Turma Formadores Certform 66

Sunday, March 29, 2015

A quem seríamos capazes de abrir a porta?

Estamos em tempo de Quaresma. Entramos naquilo que na liturgia católica se chama de Semana Santa que nos vai conduzir à Páscoa. Daí ser sempre um tempo de reflexão. Também de férias, mas até por isso, de mais espaço para a introspeção e o pensamento. Assim, dou comigo a pensar nas subtilezas do mundo, nos arquétipos que vamos criando, nesta ilusão que o mistério da vida encerra. E comecei por refletir sobre uma questão bizantina que é a de saber se todos aqueles que marcaram o caminho da História, que assumimos como nossos, seríamos capazes de albergar em nossa casa, caso eles nos batessem à porta. Lembrei-me de Fernando Pessoa. Um modesto e obscuro funcionário público, que gostava de escrever. Poucos amigos e muita escrita. Gostava de frequentar as tabernas da baixa lisboeta, e ia muitas vezes tomar as refeições ao Martinho da Arcada, que na época, era pouco mais que uma taberna. Hoje é de bom tom falar-se dele. É sinónimo de cultura, mas quantos do seu tempo o receberiam na sua casa? Quantos atravessaram a rua para fingir que não o viam, quando o vislumbravam ao longe? Desses a História não deixou registo, mas de Pessoa, esse poeta desassossegado,  sim. Mas recuemos um pouco mais. E se nos batesse à porta Luís de Camões? Esse mulherengo inveterado, esse quase marginal sempre metido em brigas, passado pela prisão, pela tortura e pela guerra. Quantos do seu tempo se riram dele, o insultaram, o humilharam. Quantos o ignoraram e lhe deram um fim de vida de miséria e de fome. Mas desses também a História não reza prosa, mas do autor d' "Os Lusíadas" já tudo é bem diferente. Mas dir-me-ão que isso acontece nas letras. É verdade mas não só. Deixemos as letras e entremos portas adentro no mundo da música. Quem abriria a porta a Mozart, génio, menino prodígio, marginalizado na sua cidade natal, Salzburgo, donde saiu ainda jovem para nunca mais voltar. Esse que foi maçon e compositor. Esse que foi acossado toda a vida pelos credores, esse que foi sepultado numa qualquer vala incógnita de local desconhecido. Mas quem o humilhou a História ignora, mesmo daqueles que o "vendem" de todas as formas e feitio na sua cidade, mas de Mozart as palavras não são necessárias que insuficientes para descrever tanta grandeza. E já agora, Beethoven, esse homem de mau feitio, que encobria o génio avassalador, esse amante do jogo e das tabernas que proficuamente frequentava. Será que lhe abriríamos a porta? Esse homem arrogante que sabia que estava acima da mediocridade do seu tempo. Esse surdo que vivia no seu grandioso mundo, a que a Natureza parece ter impedido de escutar a verborreia menor dos seus concidadãos. Desses ninguém fala, ninguém os conhece, quanto a Beethoven escutá-mo-lo ainda hoje com prazer, todos sabem quem foi. Mas entremos noutras ciências. Por exemplo, Freud, a quem hoje chamamos o pai da psicanálise, e que foi noutros tempos acusado de ser uma espécie de obstinado pelo sexo. E Madame Curie, essa polaca que foi a primeira mulher a receber o Prémio Nobel em 1903 pelas suas descobertas no campo da radioatividade. Essa mulher olhada de soslaio apenas porque era mulher, e estava a invandir um espaço tradicional de homens. E se recuarmos no tempo, e então, Galileu. Esse velho rabugento que sabia que a Terra girava em volta do Sol, mas que teve que negar essa teoria face ao poder temporal momentâneo de medíocres afundados em crenças sem sentido. E Copérnico que sofreu dos mesmos males e teve que esconder o seu saber para que a vida lhe fosse tolerada. E Giordano Bruno que pelas mesmas ideias acabou queimado vivo numa fogueira, nesses autos de fé, que são a vergonha dos cristãos, que não tinham o espírito aberto ao novo que se abria no horizonte. E se formos para a escultura ou para a pintura. Seríamos capazes de abrir a porta a Leonardo Da Vinci, esse ser acusado de pedofilia, esse homem que não olhava a meios para chegar aos fins, lançando mão de pessoas que vandalizavam sepulturas para roubarem corpos para os seus estudos anatómicos quando não os podia comprar? Esse Caravaggio assumidamente pedófilo e homosexual, que eternizava na tela a beleza de corpos jovens que depois serviam para os seus prazeres sexuais? E Bernini esse pintor e escultor controverso cuja coluna central no Vaticano pode ser admirada nos nossos dias para além de tantas outras obras? E se mergulharmos nas descobertas, de que tanto nos orgulhamos, seríamos capazes de acolher no nosso lar, esse aventureiro Cristovão Colombo, esse interesseiro sempre disposto a vender-se a quem dava mais? E se olharmos para os poderosos, que pensar dum Henrique VIII, o tal das seis mulheres, que ele foi executando exceto uma, seríamos capazes de o sentar à nossa mesa? E a esses membros da família Médicis, família que até produziu Papas, onde a traição, a mentira, até o incesto eram norma, dar-lhes-íamos um lugar na nossa casa. E porque não recuarmos ainda mais, e recordarmos Jesus Cristo. Quem lhe abriria a porta a esse judeu ortodoxo, agitador político em terra de submissão, que apenas queria que o mundo fosse melhor? Será que lhe abriríamos a porta? A esse ser escanzelado, cheio de chagas espalhadas pelo corpo, coberto de sangue e de escárnio, apupado, humilhado e ofendido, pela populaça, a mesma ou muita dela pelo menos, que dias antes o aclamaram na entrada em Jerusalém. Esses que viraram a cara à sua dolorosa passagem apenas para, covardemente, agradarem ao poder opressor romano de então. Tudo isto nos deve levar a refletir sobre o mundo dos nossos dias. Porque as gentes não são tão diferentes assim. Quantos de nós, se juntam a alguém mais evoluído, culto ou rico, para mostrar a sua ascensão social? Quantos se encostam aos mais letrados para parecerem cultos, como se a cultura se transmitisse por osmose. Quantos na sua senda de mostrar que afinal já são muito evoluídos do que os restantes, não deixam de carregar nos vês, que até agora não utilizavam, mas como não sabem utilizá-los acabam por os colocar nos sítios errados, trocando os bês pelos vês, que os expõem a ridículo. Afinal, desde que o ser dito humano apareceu neste planeta, já lá vão muitos milhões de anos, parece que afinal, não evoluímos assim tanto. Porque vivemos sempre numa ilusão, num certo faz-de-conta que pode dar jeito socialmente, pelo menos no socialmente imediato, mas que não resistirá ao passar do tempo. Porque é efémero, porque é vazio de conteúdo, porque é uma vasilha cheia de coisa nenhuma. Dei comigo a refletir sobre a nossa condição humana, animais humanos que têm tido como sina, a destruição do planeta em que vivem, deixando um rasto de destruição por onde passamos. Quem somos afinal? Que pretendemos? Que seres somos que não conseguimos tolerar a diferença, seja ela animal, vegetal ou até humana, porque somos normalmente muito rigorosos e avessos com a diferença, sobretudo no nosso semelhante. Porque queremos ser maiores e melhores, e apenas somos o lixo da História, e parece que não aceitamos que outros sejam melhores do que nós. Venerá-mo-los depois de mortos. Depois de lhes termos infernizado a vida, como se isso fosse condição essencial para a diferença, mas não os toleramos em vida, no são convívio connosco, no esgotar dos dias da existência. Afinal, a quem seríamos capazes de abrir a porta?

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