História de viagens - II
Era então um início de dia com muito sol e calor com aquela intensidade que parece romper as vestes tão típico do Mediterrâneo. Assim cheguei pela primeira vez a Veneza, aquela bela cidade que já foi uma cidade-estado das mais importantes do Mediterrâneo, agora antro de turistas com a sina duma cidade que se vai afundando lentamente. Veneza foi construída sobre estacas à muitos séculos atrás, numa formidável obra de engenharia que viria a dar nesta bela cidade que 'flutua' no mar Adriático. (Estou a referir-me à Veneza antiga, a velha Veneza', a que os italianos chamam de 'Venezia Canali' em contraponto a outra Veneza - a mais moderna - que foi crescendo mais em terra firme já sem canais e gôndolas). Fiz com a minha mulher aquele roteiro que o turismo previamente já definiu, visitamos os locais mais importantes, entre eles a famosa indústria dos cristais de Morano, autênticas obras de arte feitas duma forma quase artesanal. Depois de seguirmos a peregrinação turística habitual, e logo a seguir ao almoço, ficamos com tempo livre para desfrutar. Assim fizemos. Nesta cidade onde as ruas são pavimentadas de água e os automóveis se travestiram de barcos, tudo é original e diferente. Fomos visitar a Catedral de São Marcos obra imponente naquilo que é a beleza edificada em Veneza. A determinada altura vimos que os funcionários da Catedral começaram a enrolar um enorme tapete que cobria toda a parte central até à porta. Perguntamos o porquê de tudo aquilo. Foi-nos dito que a maré ia subir e que quase sempre tal significava que o chão ficava com água por isso estavam a tirar as passadeiras. Mas acrescentaram algo que nos deixou confusos - 'tempesta' (tempestade) - que estava a vir uma tempestade. Achamos estranho porque o sol continuava radioso, muito calor e céu limpo. Quando saímos vimos que os gondoleiros estavam a retirar as suas gôndolas para a amarrações habituais e alguns, inclusive, a puxá-las para terra firme. Vimos que o mar começava a ficar agitado. De novo ouvimos a mesma expressão - 'tempesta' - agora dos barqueiros. A muito custo e com alguns impropérios à mistura (que por decência aqui não reproduzo) lá conseguimos que um gondoleiro nos trouxesse para a outra parte, coisa que ele não queria de todo fazer. Com algum dinheiro - sempre ele - lá convencemos o senhor a fazer a viagem. Chegados ao outro lado, e sem que antes nos tivéssemos apercebido, vimos umas nuvens muito carregadas a aparecer no horizonte. Desde esse momento até terem chegado até nós foi tudo muito rápido. (Nunca tinha visto nada assim). Com elas veio uma chuva muito forte, vento e uma trovoada que parecia que ia arrasar tudo. Só então percebemos o verdadeiro significado da tal 'tempesta'. Ainda durou cerca duma meia hora, mas tão depressa desapareceu como tinha vindo. Logo os gondoleiros lançaram os seus barcos ao mar, o sol voltou radioso e quente e a famosa passadeira de São Marcos voltou ao seu estado habitual. E a nossa descoberta da cidade continuou como até aí. À noite tínhamos combinado no hotel onde estávamos ir fazer a 'gondolatta'. (Para quem não conhece é uma espécie de cortejo pelos canais de Veneza acompanhado por músicos que tocam e cantam as canções tradicionais). Veneza à noite é algo completamente distinto. Luz ténue com aquele sentido misterioso que se diz ser o das mulheres da cidade lá nos fizemos ao mar. Ao longe voltamos a ver os clarões de alguns relâmpagos, pensamos que iríamos ser apanhados numa nova tempestade. Mas não, eles foram-se esbatendo e o ribombar dos trovões quase que não se ouvia porque a trovoada ia longe e pela música e algazarra tão típica dos italianos. E foi bonito de ver aquelas silhuetas de edifícios, as janelas abertas com a luz a sair para a escuridão e aquele marujar das águas a acariciar os cascos dos barcos. Tudo muito mágico e sublime. Recordo até um senhor que estava a desfazer a barba em frente a um pequeno espelho à janela e que, quando se apercebeu da 'gondolatta', nos brindou com uma bela interpretação do célebre 'O sole mio' para gáudio das pessoas que como nós, ali estavam num local improvável, numa hora esconça, a fazer uma daquelas viagens que são dignas de gente romântica e apaixonada. E a este, outros dias se lhe seguiram com o mesmo encanto que a magia de Veneza nos dá a cada momento que lá passamos. Mas o que aqui quero ressalvar é o conhecimento das gentes do mar, daqueles segredos que as águas encerram e dos tempos que as influenciam. Sabia da instabilidade repentina do tempo no Mediterrâneo, já por lá tinha passado noutros destinos e sempre fui surpreendido. Mas este conhecimento destes homens simples que fazem das gôndolas quase a sua casa, confesso que foi uma surpresa. Encantos que vamos buscando quando nos aventuramos por outros destinos e latitudes. (A foto que aqui publico tem vários anos - ainda na era analógica - daí a qualidade não ser a melhor. Não é muito visível a intensidade da coloração do céu quando se começou a formar a tempestade, mas dá para perceber que algo se passava visto todas as gôndolas estarem atracadas e algumas cobertas e em terra firme. Esta foto foi tirada depois de termos enfrentado a ira do tal gondoleiro que nos trouxe para o lado oposto debaixo dum cortejo de vernáculo intraduzível neste espaço).
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