A Poesia de Vitorino Nemésio - 4 - "Anjos" (A caminho do Natal)
Elegi nesta época natalícia a poesia de Vitorino Nemésio. Ela dá bem a ideia dos nossos tempos, onde a reflexão sobre a vida é algo que evitamos. Por desconforto, por preguiça. Mas dela não queremos falar. Porque incomoda, mesmo quando vem de alguém que não era um ser pio, um ser de crenças. Mas por vezes, é daí que surgem as grandes verdades. Pois fiquem com esta poesia refrescante, quiçá, redentora e pensem como ela é atual apesar dos tempos já passados.
"Anjos
Os anjos são rijos como as pedras
E leves como as prumas.
Na leira rasa de aves, Tu, que redras
Terra, névoas e espumas,
—Deus, de teu nome! —sabes
Que um anjo é pouco e imenso:
Por isso cabes
No anjo e ergues o incenso.
Desfaleço a pensar-te,
Ó ser de Anjos e Deus
Que baixa em mim:
Sobe-me na alma, que ando a procurar-te
E dizendo-te Deus
Acho-te assim.
Anjos são os terríveis
Modos de Deus connosco;
Nós, as suas possíveis
Transparências a fosco.
Lívidos, sem respiração
Ficávamos do toque
Da primeira asa vinda;
Mas eles rondam apenas a oração
Que múrmura os evoque,
E vão-se, e tornam ainda.
Deles para cima, ainda mais graus de glória
Relutam ao sentido
Que deles vem à memória
Como uma bolha de ar na água do olvido:
No mais, são tão pesados,
Os anjos leves ao justo…
Tão alados,
Mas desgostosos do nosso susto!
É isso! Disse-mo agora
O verbo súbito surpreso:
Ser anjo é espanto da demora
Nossa e do peso pávido
Que nos estende.
Terrível é quem toca terra
Para a levar, e não a rende.
Que o anjo, de si, é àvido
De transe e rapidez,
E é ele que chora
Nosso chumbo, hora a hora:
É ele que não entende
A nossa estupidez."
in "Poemas de O Pão e a Culpa", Lisboa 1955.
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