Turma Formadores Certform 66

Friday, December 05, 2014

Desigualdade: o equívoco de Passos

"Os homens preferem geralmente o engano, que os tranquiliza, à incerteza, que os incomoda." (Marquês Maricá, 1773-1848). 

Este é o ponto de partida para um excelente artigo assinada pela minha ilustre colega Aurora Teixeira e publicado no Expresso. Aconselho a que leiam com atenção o que nele se diz para que não se deixem intoxicar pela propaganda vazia e oca, como sempre é a propaganda.

"Ontem, durante a sessão que teve por objectivo recordar Francisco Sá Carneiro e de Adelino Amaro da Costa, Pedro Passos Coelho afirmava, eventualmente perturbado pela emoção do momento, que " [a] crise não trouxe mais desigualdade ".

Estando o Primeiro-ministro a referir-se à desigualdade de rendimentos, a não ser que exista um novo indicador para medir esta variável, a informação oficial disponível até à data demonstra, infelizmente, que Passos está, no mínimo, equivocado.

Explico de seguida o meu argumento.
Desigualdade de rendimento: métricas

A desigualdade de rendimento é uma das mais visíveis manifestações de diferenças nos níveis de vida no interior de cada país. Uma elevada desigualdade de rendimento implica, normalmente, um desperdício de recursos humanos reflectido no facto de grande parte da população estar desempregada ou presa numa 'armadilha' de empregos caracterizados por baixa remuneração e baixa qualificação. A desigualdade de rendimento entre os indivíduos é medida, em geral, por 6 indicadores:

- Coeficiente de Gini: baseia-se na comparação entre a proporção acumulada da população e a proporção acumulada do rendimento que recebem, variando entre 0 (perfeita igualdade - todos usufruem o mesmo rendimento) e 1 (desigualdade perfeita - uma pessoa detém todo o rendimento).

- S90/S10: o rácio entre o rendimento médio dos 10% mais ricos para os 10% mais pobres.

- S80/S20: o rácio entre o rendimento médio dos 20% mais ricos para os 20% mais pobres.

- P90/P10: o rácio entre o valor do limite superior do nono decil (ou seja, os 10% das pessoas com rendimento mais alto) para o primeiro decil.

- P90/P50: rácio entre o valor limite superior do nono decil (ou seja, os 10% das pessoas com rendimento mais alto) para a mediana.

- P50/P10: rácio entre o valor da mediana e o valor limite superior do primeiro decil.
Portugal: cativo nos lugares 'cimeiros' da desigualdade entre os países membros da OCDE

Qualquer que seja o indicador que se selecione, Portugal é dos países mais desiguais entre os 34 membros da OCDE.

Recorrendo aos 2 indicadores mais usados, o coeficiente de Gini e o rácio S80/S20, e tendo como período de referência 2010-2012, Portugal é, juntamente com a Espanha, Grécia e Reino-Unido, dos países mais desiguais da OCDE. Em concreto, o coeficiente de Gini atinge 0.34 (o mais elevado entre os países europeus) e o rácio S80/S20 5.8 (ou seja, o rendimento médio dos 20% mais ricos é quase 6 vezes maior do que o rendimento médio dos 20% mais pobres). Para um termo de comparação, refira-se que entre os países menos desiguais constam a Eslovénia, a Noruega, a Islândia e a Dinamarca, com coeficientes de Gini na ordem dos 0.25 e rácios S80/S20 de 3.6.
A (Grande) crise de 2008-2009 aumentou as desigualdades.

De acordo com o relatório da OCDE ( divulgado em junho de 2014 ), a amplitude da distribuição dos rendimentos provenientes do trabalho e capital ("rendimentos de mercado"), medida pelo coeficiente de Gini, continuou a aumentar, mesmo nos países que conseguiram recuperar mais cedo da crise.

Em Portugal, de acordo com os mais recentes dados disponibilizados na PORDATA, entre 2009 e 2012, o coeficiente de Gini aumentou 1.5% (de 0.337 para 0342). Os sacrifícios associados à crise (nomeadamente os custos do ajustamento) não foram compartilhados uniformemente. Especificamente, o rendimento médio dos 20% mais ricos face ao rendimento médio dos 20% mais pobres aumentou, entre 2009 e 2012, 7% (de 5.6 para 6.0).

As famílias com rendimentos mais baixos foram as que mais perderam durante a crise. Tal é corroborado pela evidência disponibilizada num relatório do Euromod (de dezembro de 2011), onde se demonstra que as medidas de austeridade implementadas em Portugal em 2010 foram "claramente regressivas", fazendo com que as famílias mais pobres perdessem uma parte maior do seu rendimento disponível do que as famílias mais ricas.

Desfeito o equívoco, seria muito importante que o Governo colocasse em prática algumas medidas de política de combate a este flagelo. Tais medidas deveriam ser 'coisas' simples, não tendo que ser pomposamente intituladas de 'Reformas' (há aqui que minimizar o risco de terminarem como a do IRS, i.e., no ponto de partida!).

Uma proposta 

A título de exemplo, sugiro uma medida (que envolve, não obstante, um conjunto diverso de dimensões, pois o problema é complexo e multidimensional) que ajudaria a mitigar a desigualdade de rendimentos: a subvenção ou provisão pública de bens que são complementares do trabalho, nomeadamente a assistência a crianças, idosos, transportes e educação, que permitem fomentar um nível e qualidade elevados de oferta de trabalho. Esta prestação pública de complementos de trabalho de elevada qualidade e acessível a todos implicaria distorções efetivas na oferta de trabalho menos severas dos que as associadas a impostos cobrados para financiar outro tipo de gastos públicos. Notar, em concreto, que a disponibilização de uma rede de infantários pública, de elevada qualidade, com horários e serviços de apoio compatíveis com as jornadas de trabalho dos pais/encarregados de educação e acessível a todos, não só melhoraria a produtividade do trabalho (via, nomeadamente, da redução do absentismo e a ansiedade parental), como seria crítica para o desenvolvimento social e cognitivo da criança, potenciando, no longo prazo, o crescimento e desenvolvimento económico da nação.

A desigualdade da criança no acesso a um sistema de cuidados infantis de elevada qualidade (apenas acessível, atualmente, em Portugal, a famílias com elevados níveis de rendimento) reforça e aprofunda as desigualdades existentes. Tal como afirmava Malcolm X (1925-1965), "[a] educação é o nosso passaporte para o futuro, pois, o amanhã pertence as pessoas que se preparam hoje."

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