Dia Mundial da Criança
Hoje celebra-se mais um dia de qualquer coisa. Trata-se do Dia da Criança. E se há um absurdo nestas celebrações do dia de qualquer coisa, é neste que ele assume mais evidência. Porque dia da criança deveriam ser todos os dias do calendário. Como celebrar o dia da criança, onde existem crianças a passar fome, e são cada vez mais. Como celebrar o dia da criança, onde existem crianças a serem violentadas, e o seu número é aterrador. Como celebrar o dia da criança, quando estas não têm acesso ao ensino, e são muitas. Como celebrar o dia da criança, onde existem crianças que não têm acesso aos mais básicos cuidados médicos. Como celebrar o dia da criança, onde estas são coisas descartáveis, e vemos isso diariamente quando os casais se separam para buscar novas fontes quiçá de prazer e os filhos são tratados com indiferença. Como o celebrar, quando existem cada vez mais crianças enjeitadas por esse mundo fora, vivendo à sua sorte, dependendo da caridade alheia, fazendo o caminho de pedras da vida que deveria ser macio e verdejante. Como o celebrar, quando existem tantas guerras onde elas são as maiores vítimas. Enquanto existirem situações destas, será um eufemismo celebrar o dia da criança. Porque enquanto houver uma criança a sofrer, com fome, frio, sem acesso à educação, sem acesso à saúde, enquanto houver crianças descartadas pelas suas próprias famílias, enquanto houver crianças vítimas de guerras, não se pode celebrar o dia da criança. Mas se há um dia da criança, este deverá ser celebrado todos os dias, porque as crianças são o melhor de nós, porque as crianças são o futuro das sociedades e dos povos, porque as crianças serão os homens e mulheres de amanhã. E farão aquilo que viram fazer com elas. Daí a importância de quebrar as grilhetas, o ciclo vicioso, que a sociedade por vezes cria. E isso começa por dar a todas elas condições para um crescimento saudável, feliz, despreocupado como é paradigma das crianças. Onde ainda não existem preconceitos, nem ódios, nem incompreensões, porque esses são inculcados pela educação que os adultos lhes dão, inserido no meio ambiente em que vivem. Como dizia o Padre António Vieira, lá nos idos do século XVI, " um ser pode nascer tosco como uma pedra e permanecer assim toda a vida, mas também pode vir a ser, se bem esculpido, um santo que se pode colocar no altar". Palavras sábias, que ecoam ao longo dos séculos mas que teimamos em não ouvir. Porque incómodas, porque nos apontam o dedo à nossa própria consciência, à nossa responsabilidade por vezes tão mal desbaratada, palavras que nos incomodam porque nos acusam de não cuidar destas crianças que percorrem a estrada da vida, neste mundo acossado, onde o ódio e a destruição são palavras de ordem. Um mundo que formatamos à nossa pobre imagem e que não somos capazes de alterar. Um mundo que, repetindo as palavras de Vieira, apenas vai criando pedras toscas a esmo, sendo incapaz de formatar santos que se podem colocar no altar. Por isso, o celebrar o dia da criança é um eufemismo. Mais uma festa no calendário inconsequente da vida, pelo menos, enquanto não formos capazes de voltarmos a ser crianças para que assim possamos perceber o seu significado e profundidade. Hoje celebra-se mais um dia de qualquer coisa. Hoje celebra-se o Dia Mundial da Criança. Da criança que o é, da criança que terá daqui a uns anos, o sentido do que foi bom ser criança, para que possa passar o testemunho à geração que o seguirá. Esse sim, será o verdadeiro dia da criança. Mas até lá, é apenas mais um dia de qualquer coisa! Porque dia da criança deverão ser todos os do calendário.
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