Turma Formadores Certform 66

Wednesday, April 19, 2017

19 de Abril de 1506: Início do massacre dos cristãos-novos de Lisboa, relatado pelo humanista Damião de Góis, na Crónica de D. Manuel I.

Neste dia 19 de Abril de 1506 começou o massacre dos cristãos-novos em Portugal em pleno reinado de D. Manuel I. Dele há relato profuso na Crónica de Damião de Góis. Isto mostra como nesse tempo já longínquo a intolerância ia para além da sensatez. Portugal foi apenas um dos países europeus que escolheu este procedimento. Muitos outros se seguiram. Aqui eram os judeus as vítimas, mas poderia ser outro povo qualquer. Por isso, não deixa de ser curioso que olhemos para outros povos e neles vejamos o inimigo. Aqueles que querem por em causa o nosso modelo europeu ocidental. Seja sobre a forma de refugiados ou outra, a que apelidamos de terroristas, muitas das vezes apressadamente. A Europa está a viver uma espécie de lei do retorno causada por atitudes que foram assumidas em tempos idos. Já aqui trouxe muitas vezes este tema. (Não que esteja de acordo com a aniquilação do modelo ocidental que é o nosso, mas pela pressa com que apontamos o dedo a outros que fazem aquilo que nós já fizemos e que até, em vez de nos envergonharmos, temos orgulho em inscrever esses atos nas páginas da nossa História). Como é que aquilo que era bom para nós, agora passou a ser mau, só porque somos nós a vítimas? Esta é uma longa e controversa polémica, que repentinamente, passou a entrar no nosso discurso diário. Mas é preciso que não nos esqueçamos daquilo que fizemos, juntamente com outros povos, e aquilo que hoje colhemos. Nessa altura, judeus e muçulmanos viviam em sã convivência com os portugueses. E apenas a cobiça de nos apoderarmos dos bens e riquezas de outros, - nomeadamente os judeus -, levaram a este massacre. Massacres do género foram acontecendo ao longo da História do ocidente, mesmo em tempos mais próximos. Fruto da cobiça, mas também fruto da ignorância. Quando um povo se fecha sobre si mesmo e não tenta perceber o outro, está a criar o caldo onde a breve trecho um conflito aparecerá. Muitos destes conflitos têm na sua génese o desconhecimento do outro. E onde há desconhecimento há receio e medo. Receio e medo que é esbatido quando nos pomos a conversar sadiamente uns com os outros, sem preconceitos, e buscamos mais aquilo que nos une do que aquilo que nos separa. Dou como exemplo a Orquestra do Divã Ocidente-Oriente, projeto de Baremboim e Said. Em pleno conflito israelo-palestiniano, estes dois músicos apostaram numa orquestra que reunia jovens músicos israelitas e palestinianos. Ainda me recordo duma violinista israelita dizer que vinha a medo e sem saber o que poderia esperar. Depois foi o convívio franco e leal que a música proporcionou, e essa mesma artista dizia que tinha regressado ao seu país com uma outra perspetiva do outro, - leia-se dos palestinianos -, afirmando ainda que tinha feito amigos para a vida. (Isto é um projeto de amor e tolerância que todos podem ver porque está disponível em DVD nacional). Isto é do que o mundo está a precisar. De diálogo franco e leal. Sem reservas e sem medos. Apenas a criação de pontes pode levar ao entendimento, em vez dos muros que separam que tantos constroem por aí. Com muros nada atingiremos porque não conseguimos ver o outro. Não o conseguimos definir, dialogar. Ficaremos sempre com a visão de terceiros, que a política tão bem manobra, muito ao jeito do mito da caverna de Platão, onde apenas analisamos as sombras que confundimos com o mundo real. Enquanto assim acontecer, não haverá paz, seja qual for a época. A intolerância falará mais alto e alimentará o egocentrismo de alguns políticos. Assim, caminharemos para um mundo desordenado onde a capacidade destrutiva existente dá para o aniquilar várias vezes. E no fim, nada sobrará. A estratégia do 'olho por olho' conduzirá, como dizia Gandhi, a que fiquemos todos cegos. E é dum mundo cego que vos falo. Talvez já sem futuro nem amanhã. Apenas porque adoramos o deus da intolerância, coloca-mo-lo no centro e achamos que assim é que deve ser. E não era assim que deveria ter sido. Deixo-vos aqui um interessante texto sobre o tema.

"Desde os alvores da nacionalidade, sempre existiram minorias étnicas e religiosas em Portugal. Judeus e mourose, mais tarde, ciganos, constituem os contingentes mais expressivos. Os primeiros antecedem provavelmente as invasões dos segundos, tendo gozado muitas vezes de proteção e favorecimento régios, mercê das suas fortunas e atividades mercantis, e até da sua preponderância cultural. Inseridos num Portugal agropecuário e piscatório,dedicar-se-ão aos ofícios ou a actividades liberais (ciência, medicina, farmácia...) e gradualmente ao comércio e à finança, onde não conheciam grande concorrência.Ao longo da Idade Média, habitaram preferencialmente - de acordo com as suas ocupações profissionais - nas maiores aglomerações urbanas do País, em bairros próprios(judiarias; mourarias no caso dos árabes ou mouros, menos numerosos), praticando o seu culto, falando o seu idioma e mantendo as suas tradições ancestrais. Diplomaticamente, mantinham fidelidade à Coroa, a ela se subordinando. À parte alguns incidentes, principalmente motivados por questões religiosas, a sua vida no Reino não correu nunca grandes riscos de ser posta em causa.Tal acontecerá somente em finais do século XV, quando a sua posição social, económica e política está consolidada, mantendo uma relação quase simbiótica com o Portugal das Descobertas.

Na verdade, após a sua expulsão de Espanha por parte dos Reis Católicos (Isabel de Castela e Fernando deAragão) em 1492, muitos dos judeus que aí não se quiseram converter à força atravessaram a fronteira einstalaram-se no nosso País. Terão sido cerca de 60 000. D. João II, influenciado por judeus influentes na Corte(Mestre Vizinho, por exemplo, e talvez pelo rabi-mor peninsular, Isaac Aboab), acolhe-os, tanto mais que aquelespreferiram refugiar-se em Portugal a serem escravizados em Marrocos, para onde teriam de ir de barco, o que nãoconseguiam obter. D. João II impõe-lhes o pagamento de 8 cruzados para cá permanecerem, a pagar sob pena daservilidade ou da expulsão. Pretendia-se a fixação de operários especializados que faltavam em Portugal.Falecido D. João II, sucede-lhe D. Manuel, monarca que se revelou tolerante para os judeus que não podiampagar.Este monarca está, todavia, conotado com as páginas mais tristes do Judaísmo em Portugal. Em Março de1497, em troca da mão da princesa D. Isabel, filha dos Reis Católicos, como cláusula contratual de casamento, éimposta a expulsão de Portugal da comunidade judaica através de uma lei que entra em vigor nesse mesmo ano.Mas, habilmente, D. Manuel, para impedir uma saída tão numerosa de gentes do nosso País, envolvido na gestaultramarina, decreta o batismo forçado de mouros e judeus no prazo de dez meses. Caso não o aceitassem,teriam que abandonar o País. Os menores de 14 anos seriam entregues a cristãos.Esta medida visava o reforçodo poder real. Os judeus eram um bloco fechado detentor de certos privilégios e leis favoráveis no seio dasociedade civil. Torná-los legalmente iguais era uma medida que agradava à maioria da população. Há também ademonstração de uma útil tolerância por parte do monarca. Este, porém, mandará fechar os portos do País paraimpedir a sangria judaica: muitos, não querendo ser cristãos, suicidam-se, por vezes com as suas famílias. Pertode 20 000 ficaram retidos em Lisboa.A partir desta conversão forçada, passarão a chamar-se cristãos-novos,tendo um prazo de 20 anos para abandonar os costumes judaicos e se cristianizarem exemplarmente. Mas,clandestinamente ou não, grande parte dos cristãos-novos mantiveram os seus hábitos ancestrais. Em 1499 umalvará régio proíbe a saída do País aos cristãos-novos. Todavia, não lhes era limitada a ascensão a cargospolíticos ou administrativos. Ao mesmo tempo, poder-se-iam casar com cristãos-velhos.

Apesar de uma certa liberdade de consciência (não poderiam ser interrogados acerca da sua crença) e de algumaprotecção régia, a situação assumiu contornos dramáticos na fatídica Páscoa de 1506. Levantaram-se motinspopulares contra os cristãos-novos, tendo a população sido instigada pelos frades dominicanos. São perseguidose exterminados cerca de 2000, acabando nas fogueiras do Rossio. A desconfiança e a insegurança dos cristãos-novos, se nunca desaparecera, antes aumentava agora, obrigando-os a procurar outras paragens. O que desencadeou os motins populares?


A historiografia situa o início da matança no Convento de São Domingos de Lisboa, no dia 19 de Abril de 1506, um domingo, quando os fiéis rezavam pelo fim da seca e da peste que tomavam Portugal, e alguém jurou ter visto no altar o rosto de Cristo iluminado — fenómeno que, para os católicos presentes, só poderia ser interpretado como uma mensagem de misericórdia do Messias - um milagre.
Um cristão-novo que também participava da missa tentou explicar que esse milagre era apenas o reflexo de uma luz, mas foi calado pela multidão, que o espancou até a morte.
A partir daí, os judeus da cidade que anteriormente já eram vistos com desconfiança tornaram-se o bode expiatório da seca, da fome e da peste: três dias de massacre se sucederam, incitados por frades dominicanos que prometiam absolvição dos pecados dos últimos 100 dias para quem matasse os "hereges".
A corte encontrava-se em Abrantes - onde se instalara para fugir à peste - quando o massacre começou. D. Manuel I tinha-se posto a caminho de Beja, para visitar a mãe. Terá sido avisado dos acontecimentos em Avis, logo mandando magistrados para tentar pôr fim ao banho de sangue. Entretanto, mesmo as poucas autoridades presentes foram postas em causa e, em alguns casos, obrigadas a fugir. Manuel I penalizou os envolvidos, confiscando-lhes os bens, e os dominicanos instigadores foram condenados à morte por enforcamento. Há também indícios de que o referido Convento de São Domingos (da Baixa) teria sido fechado durante oito anos e sabe-se que os representantes da cidade de Lisboa foram expulsos do Conselho da Coroa (equivalente ao actual Conselho de Estado), onde tinham assento desde 1385, quando o rei D. João I lhes concedeu esse privilégio pelo seu apoio à sua campanha pela conquista do Trono português.

Em 1536, D. João III manda instalar o Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) em Portugal, dentro de uma atmosferade fanatismo religioso que reconhecia nos cristãos-novos a causa de todos os males de que padecia o País. D.João III, de certa forma, orquestrou todo este ambiente de fundamentalismo cristão, temendo os ventos daReforma que varriam a Europa. Também houve instigações de grandes famílias terratenentes, interessadas emderrubar a burguesia mercantil através da Inquisição e da perseguição aos cristãos-novos (conotados com osgrupos de mercadores e financeiros), no intuito de refazerem as suas grandes fortunas gastas em aventurasmilitares em Marrocos e de reconquistar as hierarquias da nação.Sob o espetro da Inquisição, nunca mais oscristãos-novos, maioritariamente judeus, tiveram no reino tranquilidade. Continuaram, clandestinamente, a fugirpara os Países Baixos, Constantinopla, Norte de África, Salónica (Grécia), Itália e Brasil, mantendo laçossecretos e apoiando os cristãos-novos portugueses. A maioria das 1500 vítimas da Inquisição portuguesa eramtambém cristãos-novos, tal como uma boa parte dos seus 25 000 processos até à sua extinção. No nosso País, oSanto Ofício, por exemplo, influirá no desaparecimento dos ofícios nas regiões de Trás-os-Montes e Beiras, ondeos judeus eram os dinamizadores da produção de têxteis, sedas e lanifícios. Para além do confisco de bens, oscristãos-novos serão também vítimas dos atestados de "limpeza de sangue" nas candidaturas a cargos públicos,militares ou da Igreja, o que os afastava por possuírem confirmação inquisitorial.O século XVII pouco traz demelhor aos cristãos-novos apesar da "primavera" de D. João IV e do apoio do Pe. António Vieira. O apoiofinanceiro e político dos cristãos-novos à Restauração (através das conexões judaicas de origem portuguesa naEuropa) ter-lhes-á permitido uma certa ascensão social e algumas liberdades e garantias, iniciando-se oressurgimento dos grupos mercantis onde aqueles prosperavam. Com a morte de D. João IV, porém, recomeça opesadelo inquisitorial e as perseguições contra os cristãos-novos. O Marquês de Pombal, em 1773, porá fim aeste clima de instabilidade entre os cristãos-novos, acabando com as perseguições e cerceando duramente asatividades do Santo Ofício, desde logo ao eliminar os atestados de "limpeza de sangue". Os cristãos-novosperdem o estigma da culpabilização pela ruindade do mundo, a par do domínio da burguesia, eliminando-se asestruturas do Antigo Regime. Assim, transforma-se a Inquisição em tribunal de Estado, acabando com aencenação daquela instituição clerical contra os cristãos-novos que lentamente assumirão o seu Judaísmo.PedroNunes (matemático), Abraão Usque (editor e tradutor), Garcia de Orta (médico e naturalista), António José daSilva (dramaturgo que morreu na fogueira inquisitorial um pouco antes das medidas de Pombal), Ribeiro Sanches(médico), Baruch Espinosa (filósofo) e Rodrigues Lobo (poeta) são alguns dos cristãos-novos portugueses comdimensão histórica e cultural, herdeiros de um potencial intelectual e científico avançado em relação àquilo que onosso país produzia em termos de pensamento, técnicas, artes e letras. Muitas obras e indivíduos se perderamnas teias da Inquisição, apenas por terem nascido cristãos-novos. Calcula-se hoje, por outro lado, que boa partedas vítimas do Holocausto nazi descendiam de cristãos-novos portugueses fugidos nos séculos XVI e XVII." in cristão-novo. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. 

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