Turma Formadores Certform 66

Thursday, May 17, 2018

O síndrome de Paula

Estava uma noite fria e chuvosa a contrastar com o dia límpido e luminoso. (Era uma daquelas alterações de tempo que se faziam sentir cada vez com mais frequência. Dizem que tem a ver com as alterações climáticas). Cheguei a casa já tarde. A chuva batia com intensidade nas vidraças. Não sei porque Paula não as tinha fechado. Mas não me incomodei e deixei-as assim. Conseguia ouvir o pingar da água nas goteiras do telhado. O vento a uivar por entre as árvores. Os relâmpagos ao longe a rasgar a noite. O trovão que logo se seguia a marcar a vacuidade da tormenta. Era aquela sensação dum certo fascínio e mistério que este tempo sempre encerra. A casa estava mergulhada num enorme silêncio. Apesar do adiantado da hora não tinha sono. Liguei a televisão e a notícia do dia lá estava: 'Perigoso psicopata anda à solta na cidade. As autoridades ainda não o conseguiram capturar' e, para tranquilizar a população acrescentava-se que 'tal ocorreria a todo o momento'. Afinal era o mesmo desde o dia anterior o que os jornais exibiam na primeira página. Estava farto daquilo. Desliguei o aparelho e fui buscar um livro. Para aquela noite tempestuosa e para as notícias que nos entravam pela porta adentro, pareceu-me adequado ler Edgar Allan Poe, o célebre escritor americano do conto policial. Do hi-fi, que entretanto tinha ligado, a suave música de Beethoven. Eram as famosas 'Bagatelles'. Nesse momento o piano debitava os belos acordes de 'Für Elise'. Mas não era só os belos acordes dedicados a Elisa que me enterneciam, todo o disco estava prenhe de obras duma grandeza enorme. E por ali fiquei mais algum tempo. Entretanto, fui incomodado por algo brilhante que me batia nos olhos. Era o raiar dum novo dia. Vi-me sentado no sofá com o livro de Poe tombado no chão e a interminável música de Beethoven que continuava. Reparei que tinha adormecido e o disco tinha ficado a girar interminavelmente. A casa continuava num enorme silêncio. De Paula nem rasto. Achei estranho não me ter vindo procurar. Talvez tivesse adormecido. Subi ao quarto e tive aquela sensação que sempre tinha quando via Paula deitada. Pelas frestas das persianas a luz entrava intensa, iluminando o corpo de Paula estendido na cama. Aquele corpo divino, etéreo, poderoso, esfíngico e simultaneamente sereno, que tanto me enlouquecia. O seu cabelo loiro batido pela ténue luz tinha-se transformado em fios de ouro que brilhavam na alvura dos lençóis. Aproximei-me devagarinho para não perturbar tão profundo sono. Acariciei-lhe o rosto com a mão, e este pareceu-me estranhamente frio. Inclinei-me para a beijar como fazia todas as manhãs, e foi então que vi que um pequeno fio de sangue lhe corria pelo canto da boca. Fiquei perturbado e tentei agarrar o seu corpo e agitá-la. Foi então que senti que tinhas as mãos húmidas de algo viscoso. Era sangue! Que se estava a passar ali? Corri para a janela para abrir a persiana e deixar entrar a luz para ver melhor o que tudo aquilo representava, mas também para pedir socorro. Foi então que dum canto mais obscurecido do aposento, vi sair um vulto todo de negro com um punhal na mão ainda tingido pelo sangue de Paula. Quis gritar mas o terror impediu que o som saísse. Tentei fugir, mas uma mão poderosa me agarrou e me atirou por terra. Tinha uma força enorme contra a qual eu nada podia fazer. Vi os seus olhos a faiscar de ódio, aqueles olhos intensos e brilhantes - e simultaneamente quase baços -  que se cruzaram com os meus. Era a última coisa que veria neste mundo. Segurou-me com uma das mãos, enquanto que com a outra, que segurava o punhal, a erguia bem alto. Vi o seu braço descer rapidamente sobre mim. Era o fim... Foi então que... acordei!

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