Encontros gratificantes - II
Volto hoje a Fernando Ventura depois do que ontem aqui trouxe. Porque muitas vezes na emoção dum fim de encontro, acabamos por não ter a profundidade que a conversa merecia. Por isso aqui volto para refletir. Para além da alegria renovada de me cruzar com ele, é a sua atitude interpelante, quase provocatória que me deixa a pensar, por vezes até incomodado. Recordo-me de ontem ele me ter falado no milagre da multiplicação dos pães, e dizia-me: 'Já viste, José, que a figura central neste episódio bíblico não é Jesus mas sim uma criança?' E eu dizia-lhe que sim e então! E ele voltava e dizia: ' Olha e vê, fala-se da multiplicação dos pães mas afinal o importante é a atitude da criança que os partilha. Essa criança dá-nos uma outra perspectiva do amor ao próximo, a partilha. Multiplica ao dividir, e soma sem subtrair'. E eu ali estava desconcertado, e Frei Fernando Ventura continuava: 'Porque anda toda a gente atrás de milagres. Vê aqueles que seguiram Moisés no deserto, com um calor muito pior daquele que temos tido nos últimos dias, durante anos, a esperança a escoar-se, quase a morrer e é então que tudo acontece e avistam a Terra Prometida'. E eu ainda desconcertado olhava para ele com ar interrogativo e Fernando Ventura continuava: 'Não percebes o que aqui está? Ó José também não entendes? Anda toda a gente à procura de milagres quando eles acontecem todos os dias. Nós é que não somos capazes de ler os sinais como aquela gente do tempo de Moisés foi. Olha para quando te levantas pela manhã, esse já é um grande milagre e não és capaz de o entender? Porque buscamos fora aquilo que está junto a nós e não vemos?' E acrescentava: 'Não busques fora aquilo que Deus pôs em ti. Está atento aos sinais e vai proclamá-los'. Assim interpelado senti-me desconcertado. Senti-me desconfortável. Desnudado perante Fernando Ventura. Era como se me dissesse, andas a passear pela vida à tanto tempo e não foste capaz de aprender nada. Também tu? E o incómodo aumentava em mim. Ele atirava as palavras que eu não era capaz de agarrar. E não era só a centralidade no humano, mas também nos animais e na natureza. 'Tudo é uno' sempre me dizia. E ouvi-o muitas vezes dizer bem alto e publicamente: 'Ainda bem que Deus não tem religião'. Palavras fortes que rasgam a mente, que interrogam, que interpelam, que nos agitam e nos fazem pensar. E lembrei de quando ainda jovem, passar na estrada da Circunvalação, e ver umas barracas pobres de madeira junto à via. Nunca soube quem lá vivia, mas eram pessoas aparentemente pobres. E digo 'aparentemente' porque sempre que lá passava via carros à porta de alta cilindrada, e uma delas, até tinha uma antena parabólica que parecia maior do que a própria barraca! Coisa estranha aquela. E eu não era capaz de ler os sinais. Depois a vida foi-me ensinando e fui olhando para as coisas duma outra forma. Mas mesmo assim, me sinto aturdido pelo que Fernando Ventura me disse. Pôs-me a pensar. Deixou-me muitas interrogações como sempre acontece quando tenho o privilégio de me cruzar com ele. Obrigado, Frei Fernando Ventura pelas interpelações. Isso também é uma forma de alerta, de colocar a mente atenta aos sinais, enfim, de refletir. Ontem foi um dia importante para mim, não só porque revi uma pessoa que já não via vai para mais de um ano, mas porque sempre que me cruzo com ele é como se estivesse numa qualquer aula a aprender tudo de novo só que com um diferente olhar. Há dias assim, ontem foi um desses dias. Daqueles dias em que nos sentimos incomodados tanto quanto revigorados. Porque pensamos que temos tudo arrumado à nossa volta e vem alguém e desconstrói tudo. E nos diz para reconstruir mas duma forma diferente. Ontem foi um dia daqueles que quero recordar como outros em que me cruzei com este franciscano andarilho do mundo que nos propõe um outro olhar sobre a vida e sobre nós mesmos.
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