Ficheiros Secretos - Luís Osório
Um excelente texto para uma boa reflexão.
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José Miguel Júdice, o mais poderoso entre os vencidos
De todas as minhas não relações talvez a mais próxima seja com ele – é difícil explicar, sei-o bem. Há instantes em que regresso a algo do que me disse, nas ressacas de derrotas brindo às suas palavras e só depois prossigo. «Ao longo da minha vida perdi sempre, talvez dê azar. Mas sou um homem com derrotas, não um homem derrotado. É nas derrotas que nos tornamos homens não derrotados», diz.
José Miguel Júdice é o mais poderoso looser do país. Nas esquinas dos poderes continua a ser falado, temido, há quem lhe vigie as intenções e subtilezas. Com uma sabedoria por vezes cínica provoca paixões, ódios e desconfianças. Tudo nele são marcas de um predador, marcas de alguém que não se cansa de ganhar poder, dinheiro, inimigos. Mas o que fascina no advogado, que conheço sem conhecer, é precisamente o que não está na superfície, mas no lugar onde cultiva as suas derrotas com o carinho de um qualquer jardineiro. Se quiser aproximar-se da sua essência reconheça-o nas suas falhas, nunca nos aplausos.
«Se ele não tivesse morrido eu teria sido uma pessoa completamente diferente. Teria conseguido menos na vida porque não haveria necessidade de provar nada a ninguém. A vida teria sido mais tranquila e eu mais feliz. Não tenho a mais pequena dúvida em relação a isso».
Esta é a sua marca de água. O pai morreu-lhe antes de o poder conhecer. Em Coimbra chamavam-lhe «célebre Júdice» e fazia por merecer os elogios. Muito novo, num tempo de maiores dificuldades, conseguira completar o doutoramento em Matemática e com o grande amigo Bento de Jesus Caraça militou no Partido Comunista durante vários anos. Na prisão, após a morte precoce do filho mais velho, irmão que José Miguel também não conheceu, converteu-se ao catolicismo às mãos de um teólogo franciscano.
Cunhal, um pouco antes de 1950, visitou-o duas vezes na sua casa de família - diz-se que confiava no brilhantismo do matemático. Só que, após a conversão, muitos dos amigos viraram-lhe as costas e José Miguel, com a fortíssima presença da ausência do pai, cresceu na ideia que o seu lugar seria sempre no lado oposto às barricadas comunistas.
Haveria de ser preso durante o PREC, a seguir ao 25 de Abril. Exatamente no mesmo dia em que o «célebre Júdice», seu pai, fora detido em 1950 – um no Aljube, o outro em Caxias; um por ser comunista e o outro por ser anticomunista; um com a ilusão de que ganhava e o outro com a certeza da derrota; um e o outro por convicção. Disse-me sobre isso: «A morte dele é um sinal de que há o direito de mudar sobretudo quando se sofre na mudança. Que há o direito de se confessar o erro quando se sente que se errou. Que há a necessidade de não se trair os amigos e o meu pai nunca falou, enquanto foi vivo, de nada do que sabia. Que é preciso olhar a vida com coragem e que é fundamental lutar por aquilo em que se acredita – é mais importante lutar por aquilo em que acreditamos apesar de estarmos enganados do que não arriscar lutar. Quando se morre por um ideal, ganha-se. Quando se sobrevive sem um ideal, vegeta-se».
Estava em Coimbra, em 1969. Milhares de alunos tentaram virar as ruas e as universidades do avesso. José Miguel, estudante em Direito foi do contra. Furou greves, liderou os contra-revolucionários e fez de tudo para mostrar que a coragem não era um exclusivo da esquerda.
O clima era de grande tensão. Alberto Martins, nesse tempo mais decidido, é preso depois de abordar o Presidente da República, Américo Tomás. Há cargas policiais, vigílias e é marcada uma Assembleia Magna, no Pátio dos Gerais, para o dia 28 de maio. Nesse dia estão seis mil pessoas e a larga maioria grita contra o Estado Novo, a ditadura marcelista e a manutenção de Hermano Saraiva como ministro da Educação. Flores e balões são distribuídos como forma de protesto contra os processos de inquérito a centenas de estudantes. É a maior Assembleia Magna da história de Coimbra e do lado dos situacionistas ficara combinado que falariam cem pessoas. Só Júdice avançou. Defendeu perante o espanto e incredulidade geral o direito das pessoas não fazerem greve, criticou a demagogia dos balões e das flores, e afirmou-se contrário à anarquia e ao aproveitamento político por parte do Partido Comunista. Foi apertado, insultado, ameaçado, pensou no pai. Veio-se embora amolgado, mas com a consciência de que fizera o que devia ser feito. Pergunto-lhe porquê: «Está-se vivo quando somos diferentes do mundo que nos rodeia. Estamos mortos quando cedemos ao mundo e nos tornamos iguais a ele, não temos diferenciação térmica, podemos apenas aparentarmo-nos de vivos. Devemos ser politicamente incorrectos porque só na transgressão as sociedades evoluem. A estagnação é um sinónimo de morte. E isso acontece quando se arrisca. De um lado e do outro».
É por isso que o MFA o prende. Três meses de corretivo em Caxias, o que o orgulha. Depois exílio em Madrid onde escreveu programas de governo atrás de programas de governo para Spínola. Nesse tempo de MDLP mantinha as ilusões intactas, pensava que o país de algum modo estaria à sua espera. Não se importou de pagar o preço que fosse necessário, dormiu num quarto com a mulher e os filhos e efabulou textos ideológicos que esperou serem um pequeno contributo para a construção de um novo país. Ri-se quando volta atrás, ri-se de algumas coisas que defendia. Por exemplo, que Portugal deveria transformar-se num país pluricontinental com capital em Luanda.
Hoje é a soma das suas derrotas interiores. Uma soma que, acredito, significará uma vitória no fim. Uma vida feita em função da limpeza da honra do seu pai e contra os comunistas que passou a respeitar com o passar dos anos. Não por achar ser necessário ou desnecessário combatê-los politicamente, mas por de algum modo não poder viver sem eles.
Ele explica-o melhor do que eu: «O estilo de um adversário define-nos sempre. Os adversários, regra geral, são sempre próximos. Quando dois boxeurs se agarram um ao outro há ali violência, mas também uma proximidade excessiva e quase erótica. Adversários que se odeiam precisam um do outro para sempre. Quando um deles desaparece o outro fica sem razão para continuar a existir».
LO
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