Turma Formadores Certform 66

Wednesday, October 28, 2020

O velho pedinte

Conforme prometido ontem então vamos lá à primeira estória. Durante vários anos quando descia da Praça dos Leões para a Praça da Liberdade (para quem conhece o Porto trata-se da Rua das Carmelitas) percurso que fazia diariamente enquanto estudante, cruzava-me amiúde com um velho que se encontrava deitado no chão a pedir esmola na esquina desta rua com a rua da Galeria de Paris. Recordo-o com aquela barba grande e branca, tez morena, deitando numa enxerga. Aquele era o seu 'ofício' quando o depositavam ali pela manhã e o recolhiam quando a noite começava a aparecer. À força de o ver, passou a ser mais um por quem as pessoas passavam já com alguma indiferença. Um belo dia frio de inverno já próximo das festividades natalícias, - estava nas minhas férias escolares -, descia por ali com a minha mãe para fazer umas compras para as festividades que se aproximavam. Ele lá estava, apesar de alguns cobertores velhos e andrajosos que não o abrigavam convenientemente do frio, tiritava, levantando a mão arroxeada pela inclemência do tempo, na expectativa duma esmola. Quando regressava pelo mesmo trajeto, ele ainda lá permanecia, mas verifiquei que com alguma gente à volta. Algo se passava. À medida que me aproximava comecei a escutar com mais nitidez uma troca de palavras agreste. Quando já junto desse idoso, - que nem sequer se podia erguer e andar -, estavam duas mulheres. Vim a saber que uma era filha e outra julgo que neta do pedinte. A filha batia-lhe e insultava-o porque achava que ele não teria arrecadado aquilo que ela achava por necessário. Dizia que assim não lhe dava de comer porque ele não tinha arrecadado o necessário nesse dia. Alguns transeuntes acudiram e daí a pouco a confusão era enorme entre os familiares do pobre velho e quem passava. Sei que alguém chamou as autoridades. Não sei como aquilo acabou. Apenas me recordo no rosto marcado pela velhice e pelo sofrimento, ver lágrimas a correr, olhos encharcados e meio baços. O velho chorava pela confusão que existia à sua volta talvez temendo as repercussões que teria quando chegasse a casa. Lembro de alguém - talvez uma vizinha porque conhecia a realidade dessa gente - afirmar que a filha lhe batia todos os dias quando à noite ele não aparecia com o dinheiro que ela achava indispensável. Que o fazia passar fome. Saí dali incomodado. Quando cheguei a casa fui para o escritório e essa estória não me saía da cabeça. Busquei uma folha de papel e escrevi sobre esse infeliz e do sofrimento misturado com o medo que vi nos seus olhos. Era para ser um texto, saiu um poema. O primeiro que escrevi. Guardei-o numa das gavetas da secretária para mais tarde aprimorar. Perdi-lhe o rasto e nunca trabalhei sobre ele, mas o incómodo que o motivou ficou bem patente para mais de três décadas volvidas o recordar. Enquanto escrevo parece que o estou a ver. Pela idade que então tinha, de certeza que já não está entre nós. Mas aqui fica a memória e a homenagem a um homem vítima da sua própria família por quem talvez tenha lutado muito para sustentar. Agora velho e doente deixou de ter interesse. Passou a ser descartável como tantos outros que todos nós conhecemos. Uma estória triste que fez despertar em mim uma vertente poética que nunca cultivaria no futuro.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home