Turma Formadores Certform 66

Sunday, October 05, 2014

Sobre a chamada matilha de Rio Tinto

Tenho andado triste por esta matilha. Alimento-os vai para 14 anos. Vi gerações de cães nascerem, viverem e morrerem, alguns de morte bem macabra. Vi filhotes retirados às mães sem saber o que lhes aconteceu. Vi as mães desesperadas pela perda dos seus filhos. Levei roupa para que as ninhadas se mantivessem aquecidas em tempos de invernia. Vi uma mãe desesperada pela perda dos seu filhos, gritando, num domingo de Páscoa quando lá lhes fui deitar de comer, como tinha feito no dia anterior ainda com os filhos. Vi cães a dormirem à neve dentro de sofás velhos da lixeira onde andam. Sacudi-lhes a neve de manhã quando chegava e tentava massajar-lhes as costas. Vi o seu agradecimento no olhar. Vi destruírem os abrigos que se iam construindo. Vi deitarem fora a comida que levo. Vi dejetos na comida para que não comessem. Vi a comida roubada que com tanto carinho e amor lhes deixo. Por tudo isto, sofro. Dessa matilha restavam apenas dois, dos mais de trinta que já alimentei. A Sheila e o seu filho Repinhas. A Sheila apesar de ter sido capturada para adoção, tal como o Repinhas, nunca se conseguiu adotante e tiveram que ser devolvidos ao local porque o hotel era demasiado caro. O Repas, irmão da Sheila e pai do Repinhas, conseguiu ser adotando e, tanto quanto julgo saber, está bem. A sua irmã Sheila não teve a mesma sorte. Praticamente vi-os nascer. Andei com eles ao colo. O mesmo com o seu filho Repinhas. Afeiçoei-me a eles. Não os podia trazer comigo porque tinha vários em casa e já não dava para mais. Por isso ficaram, agora só a Sheila e o Repinhas. A Sheila é uma cadela muito dócil. Tem sofrido muito. Tem um amor imenso pelo seu filho Repinhas. Vi-a com fome esperar que o seu filho comesse, e por vezes pouco sobrava, para só depois ela o fazer. Mãe extremosa que faz a inveja a muito ser humano. Contudo, desde as férias comecei a notar um emagrecimento súbito na Sheila. Deixou de comer, ou apenas lambia alguma lambarice que sempre lhes levo para além da comida habitual. Estava sempre deitada. Aqui convém dizer que a Sheila foi castrada há uns anos. Depois do cativeiro para adoção e da castração, ela que sempre vinha ter comigo e me acariciava, e que me deixava acariciá-la também, passou a evitar-me e, contudo, não fui eu que a capturei. No dia em que me cruzei com ela de novo depois da operação, veio ter comigo a chorar e a virar-se de barriga para cima, como a explicar-me o que lhe tinham feito. Teve-se que tomar essa atitude porque ela não parava de ter ninhadas. Penso que era uma espécie de "fábrica" para fazer ninhadas, que abasteciam o "negócio" de alguém. Andavam sempre por lá alguns cães que aparentemente fugiam de casa dos donos. Depois da castração nunca mais lá apareceram. O "negócio" tinha acabado. As fugas eram orquestradas por gente sem escrúpulos, hoje está bem claro. Mas voltando ao que estava a dizer, a Sheila começou a dar sinais de estar doente. Falaram em envenenamento. Ou seria a idade? Nunca saberei ao certo. O que posso afirmar é que a Sheila depois do Verão deixou de aparecer. Há cerca de dois meses ela veio ter comigo, depois de muito tempo a não se aproximar. Deixou que a afaga-se como nos velhos tempos. Acariciei-a. Vi o prazer que tinha nos seus olhos brilhantes e simultaneamente tristes de quem nunca teve sorte na vida. Nunca pensei que seria a última vez que a veria. Hoje penso que foi uma espécie de despedida. Tenho perguntado por ela, na zona industrial onde eles estão e onde contam com o apoio de alguns trabalhadores. E onde eu mesmo trabalhei há muitos anos e tive contacto com esta matilha. Ninguém a viu. Ninguém sabe dela. Desapareceu. Sempre ali esteve e dali nunca sairia. Assim se conclui que, ou morreu ou foi capturada. Algumas pessoas me disseram que no canil não estava. Espero que tenha morrido. Só tenho pena se ela foi capturada para outros fins e se está ou esteve em sofrimento. É esta incerteza que me destrói. Apesar do enorme amor que lhe tenho, espero que esteja bem ou então que tenha partido para o país do arco-íris. Não gostaria de saber que está a sofrer depois do muito que já sofreu desde que nasceu e de que eu fui testemunha. Agora apenas anda por lá o seu filhote, o Repinhas. Cão muito independente, um pouco à imagem do seu pai, que gostava muito dela, mas que volta e meia se ausentava atrás duma qualquer cadela que andasse por ali, deixando a Sheila sempre triste e preocupada. Não o tenho visto também há muito tempo. Dizem-me contudo que anda lá e que vai comer a comida que eu e outros lhe deixamos. Sobre o desaparecimento da Sheila já fiz apelos nas redes sociais para ver se alguém me dava notícias e nada. Uma pessoa que também os alimenta disse-me que já bateu a zona nos campos envolventes e nada viu. Desapareceu. Só espero que não esteja a sofrer, já basta o que sofreu ao longo da vida. Todos os cães desta matilha me deixaram saudades, mas estes dois especialmente. Porque eram os dois últimos. E sobretudo porque estabeleci uma relação com eles de enorme cumplicidade. A Sheila foi o único cão que consegui afagar enquanto comia, e todos sabemos que os cães, na sua maioria, não gostam disso. Quando me olhava fundo nos olhos deixava-me uma sensação de paz e tranquilidade enormes. Também a olhava da mesma maneira, e penso que lhe transmitia o mesmo sentimento. Quando olhamos um cão nos olhos com intensidade e ele faz o mesmo connosco nunca mais o esquecemos. Dificilmente nos separamos. Mas a Sheila não está lá. Aparentemente não anda lá. Não sei o que lhe aconteceu. Só não a queria ver a sofrer. Para isso, seria melhor que a morte redentora se cruzasse com ela e lhe aliviasse definitivamente a vida sofrida que sempre teve. Tenho muitas saudades tuas, Sheila. O mesmo do teu filho Repinhas. Sóis um pedaço de mim muito importante embora não o saibais. A minha vida não foi mais a mesma desde que vos conheci. Estejais em paz nesta ou noutra vida qualquer. Nesta ou noutra dimensão.

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