Tempo de Páscoa, tempo de passagem, tempo de mudança
Estamos chegados à Páscoa, à passagem, no seu sentido etimológico. Mas que passagem? A de uma vida para outra, - seja ela num outro mundo, (dentro da crença judaico-cristã e não só), seja neste, mudando de modo de viver e estar na vida face ao mundo em redor -, desde que tenhamos a capacidade, a força, a vontade de mudança. E aqui quase sempre não é assim. Porque continuamos a fazer o mesmo, senão pior, num mundo desalinhado onde os valores não existem, apenas o dinheiro é rei e lei. Em nome dele se mata, se rouba, se comercializa enganadoramente, enfim, o nosso pior vem ao de cima. E é sobre este lado mais obscuro e negro do ser dito humano que vos quero falar agora. Porque durante estes dias que antecedem o domingo de Páscoa, eles são um autêntico calvário para os animais. Todos sabem da minha ligação aos animais, mas para além disso, o que mais me choca é a hipocrisia de quem diz defendê-los e depois os abate, - ou compra para consumo, o que vai dar no mesmo -, em nome duma tradição sem sentido. Porque em nome dum Deus, - que nós reduzimos à condição de menor -, se fazem estas coisas. Interrogo-me, que Deus precisa do sacrifício de pobres inocentes que, segundo a tradição, Ele criou? Não faz nenhum sentido, como já não fazia quando estes sacrifícios não eram de animais mas de seres humanos. Apenas "alteramos" as preferências desse Deus, porque nos era conveniente. Apenas e só por isso. (Isto traz-me de novo à memória aqueles que dizem defender os animais, - porventura, até o fazendo -, mas o seu conceito de animal fica-se pelo cão ou pelo gato, esquecendo que existem muitos outros tão sensitivos como eles, - e já agora, como nós -, já para não falar nas aves que enobrecem os céus ou nos peixes que povoam os mares). Sempre me impressionou aqueles defensores dos animais - porque dos outros já espero tudo - que se sentam à mesa com uma peça de carne para refeição. Não sou fundamentalista, nesta como noutras matérias, apenas pretendo ser coerente. Porque a Páscoa devia ser, de facto, uma época de reflexão, de passagem, de mudança, para algo melhor e bem diferente daquilo que foi a nossa vida anterior. Mas não, porque a Páscoa para a maioria das pessoas, - como outras festividades marcantes do calendário -, não passa dum vetusto almoço e/ou jantar, esgotando-se aí todo o seu simbolismo. Sei que quando se compra uma peça de carne num hipermercado, apenas vemos isso mesmo, o pedaço de carne, e quando o confecionamos e comemos também, não conseguimos pensar, - ou não queremos pensar porque nos incomoda -, no sofrimento atroz que está por detrás dessa mesma peça de carne. Um ser vivente, com sentimentos iguais aos nossos, que sente frio e calor, medo e angústia, felicidade e infelicidade, está ali, uma parte dele, para que alguns se regalem com o que resta do seu cadáver. Nunca consegui perceber, aqueles que se horrorizam quando se fala de canibalismo. Será porque significa que é um nosso semelhante que ali está? Como nunca consegui entender, aqueles que se sentem horrorizados quando doutras partes do mundo se vêem homens e mulheres, tão humanos quanto nós, a matar e a confeccionar cães e gatos. Vejo até apelos a Deus - certamente o mesmo que quer, (ou que nós queremos), encharcar-se em sangue nas festividades - para que extermine esses povos. Tudo não passa duma hipocrisia inconsequente. O que deveriam era irem visitar um dos nossos matadouros, - fazendo o percurso desde que o pobre animal chega até que sai retalhado aos pedaços -, para ver o que lá se passa. Provavelmente, como diz Paul McCartney, "se os matadouros tivessem paredes de vidro, como os bancos, nunca mais ninguém comeria carne na vida". Mas até que cheguemos a esse estado de perfeição, continuaremos a abatê-los, quando mais não seja, em nome dum qualquer Deus menor, imperfeito, sanguinário, destruindo a sua própria criação. Esta é mais uma incongruência da nossa espécie que por onde passa apenas deixa um rasto de destruição e de morte. Afinal, se fomos capazes de matar o Filho de Deus, - como rezam as Escrituras -, como nos poderemos importar com questões tão prosaicas como esta? Até haverá quem me lembre que sempre se sacrificaram animais nestas festividades, desde tempos imemoriais e bíblicos. É verdade. Mas, por outro lado, isso sempre me trás à lembrança aqueles tetrarcas e sacerdotes de Jerusalém que apelavam aos sacrifícios de animais que as pessoas tinham que comprar nas suas próprias quintas A hipocrisia também é uma senhora muito antiga, mesmo anterior aos tempos bíblicos! Novamente, desejaremos uma Páscoa feliz e de paz. E assim ficaremos de consciência mais leve. Mas que felicidade se tem na morte dum outro ser? Que paz é essa que apregoamos? Só se for a dos cemitérios, ou melhor, da mesa farta e cheia de restos de cadáveres. Essa não é, seguramente, a minha Páscoa. Esse não é o meu Deus a quem venero. Pode ser a Páscoa de muitos, mas não a minha. Há quem me acuse de ter uma visão negra das coisas nestas festividades, mas coloquem-se na pele desses pobres infelizes, e depois digam-me como se sentiriam. Por isso, nesta Páscoa quis aqui dar voz a todos aqueles que não a têm, que são sacrificados à gula de muitos. Porque deles é o simbolismo do melhor dos mundos, que não conseguimos ter, que não somos dignos de merecer. Boa Páscoa a todos!
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