'O sonho' revelado
Venho de novo a este espaço na sequência do texto que ontem publiquei subordinado ao tema 'O sonho'. E faço-o movido pelos vários comentários que recebi, - muitos duma forma privada -, dando-me assim motivo para um esclarecimento que julgo necessário. Mas para isso, é fundamental que faça aqui a minha manifestação de interesses. Não sou adepto de futebol. Normalmente não vejo jogos. Se frequento estádios? Não. Se no domingo fiquei satisfeito com a vitória da seleção do meu pais, obviamente que sim, como todos os portugueses. Posto isto, passemos ao essencial. Aquilo a que ontem me referia era a uma certa forma de alienação de algo mais complexo que existe no nosso país. Se fizermos uma comparação com a Grécia em 2004, veremos um país que se sagrou campeão europeu, onde os políticos aproveitando o momento criado, varreram para debaixo do tapete uma situação que, qualquer pessoa que faça análise económica, sabia que ia acontecer, a única dúvida era quando. Foi dada a ideia da grande Grécia, - daquela de Sócrates, Platão, Arquimedes, Xenofonte e tantos outros -, aquela que tinha dado o conceito de democracia à Europa que a viria a interpretar mais tarde, cada um à sua maneira. Tudo parecia fadado para a grandiosidade do momento. Lá também se pensava que era uma terra de leite e de mel. Em breve, - e não podendo ser mais ignorada -, a realidade mostrou que não seria bem assim. Hoje a Grécia está na situação que todos conhecemos e levará várias gerações a voltar a equilibrar-se na Europa a quem tanto deu no seu passado glorioso. O paralelismo com Portugal é por demais evidente. Vivemos das nossas glórias passadas, - porque simplesmente não temos glórias mais próximas a que nos agarrarmos -, e, por tudo aquilo que vivenciamos ontem, ficamos com a ideia de que afinal tínhamos recuperado a terra de Afonso Henriques e a glória de D. Manuel I. Pura ilusão. A situação do país é bem mais complexa do que aquilo que os portugueses comuns pensam. Daí a minha surpresa de alguns comentários de pessoas que sei serem detentoras duma boa formação intelectual, e mesmo assim, terem-se deixado arrastar pela enxurrada. Nem sempre as maiorias têm razão, normalmente até nem a têm. (E já que estamos a falar de futebol, pois que o diga o selecionador português, que era péssimo à uns dias e hoje virou herói nacional!) Vimos ontem a maneira como os políticos se colaram aos jovens jogadores aproveitando - cada um a seu modo - aquilo que dali poderiam extrair. Repito: o paralelismo de Portugal com a Grécia é por demais evidente, contrariando um certo discurso de poder, que pretende dizer o contrário. Até nas críticas que se fizeram à França. (Se têm dúvidas vão consultar aquilo que se disse por cá quando a Grécia ganhou, mesmo vindo de pessoas responsáveis e, que por isso mesmo, deveriam ser mais contidas. Nos dias de hoje em que o ciberespaço está à distância dum clique para qualquer um, é fácil verificar isto mesmo). Assim, aqui também é importante dizer-se que, se compreendo que no calor dos festejos hajam sempre exageros, tenho alguma dificuldade em acompanhar críticas aos franceses feitas duma forma exagerada. Um povo não pode ser julgado pelas ações duma minoria. Com certeza que houve alguma deselegância por parte de alguns franceses para connosco, mas isso não pode ser o estigma duma nação. (Mais uma vez apelo a que vejam aquilo que por cá se disse em 2004). Porque uma nação que recebeu milhares de portugueses que, se é certo que começaram por viver em condições indignas nos chamados 'bidonville', também foi o país que deu muitas oportunidades para que hoje a comunidade portuguesa seja respeitada. Desde vereadores em câmaras importantes, como por exemplo, a de Paris, até portugueses com lugares de direção em empresas francesas - muitos que conheci ao longo da minha atividade profissional - são bem o exemplo do exagero a que assistimos. (Para não falar dos muitos empresários que tiveram nesse país a oportunidade que o seu país de origem lhes negou). Se não vejamos a maneira como recebemos os emigrantes que nos procuram. Os bairros de negros que viraram autênticos 'ghettos', o racismo em torno da comunidade cigana que todos conhecemos - e não é por termos um cigano ou negros na seleção que tal se atenua - e agora com a chegada de refugiados de guerra dos países árabes, como os tratamos, que oportunidades lhes damos, como olhamos para eles? Meus amigos, não sejamos mais papistas do que o papa. Manda o bom senso que quem tem telhados de vidro deve ser mais recatado. Se à Grécia devemos estar agradecidos por nos ter dado os esquiços do que viria a ser a democracia que hoje se pratica na Europa, à França temos que agradecer o nos ter dado uma visão do mundo bem diferente daquela que existia até então. Conceitos como liberdade, igualdade e fraternidade são a colheita semeada em França vai para dois séculos, que soubemos aproveitar e adaptar. Não reneguemos o país de cultura que é. (Não esqueçamos que é a terra de Voltaire, Sartre, Rimbaud ou Aragon, de entre tantos outros, que tanto nos legaram). Não deixemos que um simples jogo de futebol crie barreiras onde elas não existem. Um jogo de futebol é apenas um jogo de futebol. Não uma certa manifestação xenófobo e nacionalista, na qual não me revejo, mas apenas e só um espetáculo. O vídeo que ontem circulou por aí duma criança portuguesa a confortar um adulto francês, é bem exemplo disso. É que existe muito mais no mundo para além do futebol. O sonho de que ontem vos falava é isso mesmo. É a ilusão em que vivemos nestes últimos dias. Não nos deixemos alienar por ela porque corremos o risco de acordar para um terrível pesadelo.
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