Maio de 68 - Reflexões sobre uma década muito rica em acontecimentos
Sempre que o mês de maio surge lembro-me bem daquele outro maio de à 50 anos em França. A década de 60 foi rica e, simultaneamente, conturbada. Era a época da grande contestação dos jovens aos sistemas de então e, sobretudo, uma outra visão do mundo. Uma visão por vezes idealista, mas todos esses movimentos encerravam em si o questionar a sociedade em que então se vivia. Era o tempo da guerra do Vietname e do outro lado do Atlântico, ouvia-se Bob Dylan a cantar 'Times are a-changing', um hino para todos aqueles que sentiam na pele o recrutamento para uma guerra infame - como são todas as guerras - donde a probabilidade de regressarem era muito baixa. (Falo da guerra do Vietname). A Europa não ficou indiferente e também a sua juventude se começou a inquietar. Na Grã-Bretanha, John Lennon devolvia a condecoração com que tinha sido agraciado pela Rainha Isabel II. Em França começou a desenhar-se um movimento popular onde todos cabiam, que ficou conhecido como o maio de 68. Era o tempo de Léo Ferré cantar 'Les anarchistes'. Era o tempo de filósofos como Jean-Paul Sartre escrever a 'Crítica da Razão Dialéctica' e Simone de Beauvoir dar à estampa 'La Femme rompue' (A mulher desiludida). Por cá, lia-se Sartre quase às escondidas. Ferré era demonisado, um verdadeiro anátema. Bob Dylan ainda se ia ouvindo numa tentativa de embalar os jovens que nada conheciam da língua inglesa, e onde a música era o único lenitivo. Mas também era o tempo de Woodstock que não poderia ser ignorado. Por cá, era o tempo da guerra colonial e da ditadura que amarrava um país e o fechava sobre si mesmo, nos braços da propaganda que o regime lançava diariamente. O nosso Woodstock chamava-se Vilar de Mouros, onde havia mais polícia política que espectadores. Mas o pensamento não tem fronteiras e, embora a custo, as ideias iam passando de país em país, de mão em mão. Os EUA tiveram a esperada derrota na Indochina. Na Grã-Bretanha a monarquia resistiu ao embate. A França controlou os movimentos das barricadas, aglutinou-os, mas nunca mais foi a mesma. Portugal ainda iria resistir um pouco mais, mas a queda do regime já estava bem no horizonte. A História nunca pode ser parada seja por quem for, e mais cedo ou mais tarde, o mundo iria mudar. Como mudou. Anos mais tarde, quando comecei a viajar pelo mundo, a França - especialmente Paris - ficou no meu roteiro - não deixei de aproveitar a oportunidade. E foi em Montmartre que me cruzei com muita gente dessa geração de maio de 68. Alguns que o regime não conseguiu enquadrar e que continuavam com as mesmas quimeras de então, vivendo nas franjas mais marginas da sociedade. Foi lá que um dia me cruzei com um desses que em 68 esteve nas barricadas. Perguntei-lhe então o que significou para ele o maio de 68? A resposta foi clara e sem hesitações: 'Nessa altura, interrogava-mo-nos sobre o que era a felicidade?' Uma resposta profunda onde se encerram muitas filosofias, muitas utopias, muitos sonhos. Falei com outros sobre o mesmo tema e as respostas não se afastavam muito desta. Senti um profundo respeito por aquela gente que, apesar de tudo, se amarrava às suas ideias que não queriam deixar escapar. (Talvez por isso, sempre que passo por Paris não deixo de ir a Montmartre que passou a ser uma referência dum certo sonho, aquele 'Rêve d'artiste' de que falava Émile Nelligan). Apesar de tudo, foi um período rico para os jovens de então. Eles acabaram por ser protagonistas duma mudança histórica do mundo. Hoje, à distância de 50 anos, olho para trás e vejo que o nosso tempo já perdeu os seus ideais. Esses que compete aos jovens erguerem e seguirem. Afogados nas suas tecnologias de ocasião - quais deuses dos tempos modernos - os jovens deixaram de ter ideais. Deixaram de pensar. Ao fim e ao cabo, são pessoas que foram agrilhoadas pelos sistemas vigentes duma forma subtil e definitiva. Eles não lêem o que é ótimo para os poderes instituídos, porque assim, não questionam. Eles não reivindicam porque preferem a comodidade das suas casas e dos seus sofás. Eles não lutam porque para além de não terem ideais porque lutar, a coragem não é o mais forte nestas novas gerações que se vão acomodando. Como dizia Paulo Freire, 'uma geração que não lê é uma geração prisioneira'. Eu acrescentaria que para além de não ler, nem são capazes de ter uma opinião formada do mundo que os rodeia. Afinal, o maio de 68 trouxe muito, mas tudo (ou quase tudo) se perdeu. Talvez um dia, - como acontece nos ciclos da História -, apareça uma geração que se questione, que perceba como foi manietada e assim, se criem condições para o salto qualitativo, epistemológico, que levará o mundo para um outro patamar.
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