Lágrimas de outono
As autoridades tinham chegado poucos depois de alertadas pela vizinhança sobre os disparos que tinham ouvido na casa ao lado. Chegam e depararam-se com aquele tétrico e sinistro cenário. Um corpo ainda quente, tombado sobre uma secretária. O sangue ainda fresco a escorrer pelo tampo e a pingar para o chão. Uma pistola disparada com precisão, caída aos pés. Sobre a mesa uma carta. Meio amarrotada e com tinta ainda fresca. Pegaram na carta e leram.
"Minha querida amiga, Helen.
Não sei o que dizer, não sei como dizer. Há momentos na vida em que ficamos assim. Turvados pelos acontecimentos, sem rumo, sem força para prosseguir, tolhidos por algo que nem sabemos explicar. Este é o meu caso. Depois de tantos anos de convívio nunca esperei que acabasse tudo deste modo. O fim é inevitável, todos o sabemos, mas quando esse fim chega sem que o ciclo se cumpra é mais difícil de aceitar. Sei que na vida há mais desencontros do que encontros, mas como dizem os mais afoitos, são as etapas dum crescimento de aperfeiçoamento para sermos transportados a um outro patamar de conhecimento, quiçá, de espiritualidade. Sempre acreditei que teria a força suficiente para resistir, para enfrentar, para captar a curva da gota de orvalho na ponta de uma folha outonal. Mas afinal enganei-me. Passado todo este tempo ainda não fui capaz de me acostumar à sua ausência, à ausência duma vida abruptamente interrompida. Depois de meses, anos até, a pensar no sucedido, não fui capaz de entender, de aceitar a razoabilidade da atitude. Tudo na vida tem o seu tempo, também o da memória. E essa continuará pelos tempos enquanto o discernimento me acompanhar. Porque há coisas que não se compreendem, muito menos se aceitam. Não sei o que a levou a fazer isso, a tomar tão drástica atitude, mas isso agora não importa, o certo é que o fez e eu tenho dificuldade em aceitar, quanto mais em perceber. Vivemos momentos de alegria e de paixão desenfreada. Tudo parecia estar a correr pelo melhor e o sol iluminava as nossas existências. Até àquele dia fatídico em que tudo aconteceu. Os muros da vida desabaram sobre mim duma força inexplicável. Nunca consegui ultrapassar esses momentos tão dolorosos em que o dia se fez noite e as forças das trevas me engoliram a vontade. Muito aconteceu e eu nunca encontrei explicação. Muito tempo passou e eu nunca fui capaz de rasgar a noite da minha vida para que o sol radioso penetrasse com os seus raios. E isto tudo porque um dia tomou uma decisão irreversível. Agora é tarde para compreender, é tarde para escrutinar. Os dados estão lançados e a maldição se abaterá de novo, em definitivo, para que nada mais fique que cinzas, para que nada mais reste que memórias, para que nada mais sobeje que interrogações. E agora chegou a altura de me reunir a si e espero que me explique então o que aconteceu e porque aconteceu. Só isso e nada mais. Tão pouco e simultaneamente tanto. É altura de terminar. E aqui lhe deixo estas palavras, lágrimas de tinta que o papel ensopa. Em breve nos reencontraremos. Até já. Beijos do seu amor.
James".
Entretanto alguém entrava com um saco plástico para meter o corpo num ritual frio de tantas vezes repetido. A ambulância aguardava à porta perante a curiosidade dos vizinhos. Saíram todos. O inspetor foi o último. Fechou a porta que logo foi selada por um agente que se encontrava por perto. Algum vento agitava as árvores do jardim. Um sol baço escondia-se lentamente e o frio de outono começava a surgir. O inspetor ainda olhou para trás, talvez para compreender o que ali tinha acontecido. Ele que anos antes também tinha ali estado por idêntica situação. Era uma espécie de maldição que por ali se voltava a abater, terá pensado certamente. Ergueu a gola do sobretudo e partiu. Os vizinhos foram desmobilizando aos poucos. Eles também partiram para o aconchego dos seus lares. Apenas ficaram à porta, e espalhadas pelo jardim, as interrogações sobre o sucedido. Era apenas mais um caso. E lembraram aquela outra tarde soalheira dum outono de à dois anos atrás, quando a vizinha se tinha suicidado. Nunca ninguém compreendeu então porquê. Agora também não.
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