Turma Formadores Certform 66

Saturday, May 04, 2019

Os primórdios do Nicolau

O ciclo de vida do meu velho amigo e companheiro Nicolau está a chegar ao fim. É a doença, é a idade avançada, e só ainda não teve um desfecho porque o Nicolau ainda não desistiu de viver. Isso já todos sabemos e não é disto que vos quero falar agora. Quero trazer aqui o início de vida do Nicolau. Como já por diversas vezes aqui referi, o Nicolau foi abandonado à porta do prédio onde então vivia na Maia numa noite tempestuosa de inverno ante véspera de Natal. Toda a noite o ouvi chorar, mas sempre pensei que fosse numa varanda de outros prédios que existem no local. Talvez uma 'prenda' para um qualquer menino que quando se fartar dele o iria abandonar. Não consegui dormir toda a noite com aqueles gritos de afição daquele cachorro que ecoavam nos meus ouvidos. Levantei-me bem cedo como é meu hábito e vim à rua ver o que se passava. E lá estava ele, debaixo dum carro, completamente encharcado a tiritar de frio. Era ainda muito bebé. Segundo os vetrinários que o examinaram nos dias seguintes, teria algo como três semanas de vida. O trauma dessa noite ficou com ele para a vida pois sempre que está um dia de vento, o Nicolau como que desaparece, esconde-se onde pode. Agora já não tanto porque penso que nem tem a noção disso. Mas voltemos à saga de início de vida do Nicolau. Debaixo do prédio onde morava há um café e pão quente onde ia comprar o pão e tomar o pequeno-almoço. Quando lá cheguei pelas sete da manhã, uma das empregadas perguntou-me se tinha sido eu que tinha resgatado o cão. Disse-lhe que sim, e logo ela me pediu encarecidamente para lho dar. Questionei-a porque não o tinha resgatado. Disse-me que não o poderia ter no estabelecimento e que o levava quando saísse. Ela só saía à tarde e o pobre infeliz ali ficaria a gritar todo o dia, correndo o risco de ser atropelado. Embora não pensasse dar o cachorro a ninguém, ainda a questionei sobre as condições que tinha para ele. Era para ficar amarrado toda a vida a uma casota num quintal, embora não soubesse se o senhoria deixava. Isto é, se não deixasse era posto de novo à rua. Face a isto que lhe disse, encolheu os ombros e por ali ficou. Mas o Nicolau já não sairia das minhas mãos. A maneira como me olhou nos olhos quando nele peguei e que logo o fez calar, foram demasiado fortes para o enjeitar. Poucos dias depois, e já com ele forte e traquina levei-o ao veterinário. Fomos à Clínica de Matosinhos onde a minha mãe tratava os cães e onde ele foi castrado e logo ele encantou as pessoas que lá estavam. Era um sábado de manhã quando chegou também um casal idoso que levava o seu cachorro, mas ainda a curar o luto da perda dum outro. Acharam o Nicolau muito bonito e pediram se lhe dava o cachorro e prometeram que o tratavam bem. O que admito como certo porque o que lá levavam era muito bonito e bem tratado. O Nicolau parece que percebeu o que estava a acontecer. Ele tão traquina até aí, logo veio colocar-se debaixo da minha cadeira no meio das pernas muito sossegado. Ele sabia que nada nos poderia separar mas mesmo assim ficou apreensivo. Depois da consulta e quando regressávamos a casa, já no carro, ele voltou a ser o que era dantes. Tinha percebido que vinha connosco para o seu lar. E depois foi em crescendo. Até no prédio queriam ficar com ele para, mais uma vez, o amarrarem a uma casota. Nem pensar. O Nicolau entrou na minha vida para sempre. Sempre muito acarinhado por nós e por uma cadela que também tínhamos resgatado à rua, e que foi sempre uma mãe extremosa para ele até ao fim da vida, mesmo quando já muito velha, ele a tratava com alguma agressividade. Sempre o fez desde que percebeu que era maior e mais forte do que ela, embora a Tuxa quando se zangava a sério o punha na ordem. E assim o Nicolau, o meu último abencerragem, foi crescendo em tamanho, força e beleza, e foi preenchendo cada vez mais a nossa casa. Sobretudo quando os restantes foram morrendo e só ele ficou. E foram seis companheiros que ele teve durante um determinado período da vida.  E assim foi vivendo e envelhecendo, com as forças a faltar, a vista a fugir, a magreza a apossar-se do seu belo corpo, que neste momento está bem longe do glamour doutros tempos como é natural. Assim tem sido a longa vida deste meu velho amigo e companheiro que todos os dias, e por vezes mais do que uma vez por dia, me olha nos olhos como quando lhe peguei pela primeira vez. Aqueles olhos agradecidos dum ser que poderia estar fadado à miséria igual a tantos, amarrado, ao frio e ao calor, com fome e sede, e que apenas porque cheguei primeiro lhe transformei a vida para melhor, quero crer. Pelo menos tudo faço para que o que resta da sua vida seja de tranquilidade, serenidade, dignidade. O Nicolau é mais do que um cão para mim, ele é um membro da família e assim continuará a ser até que o último sopro de vida o abandone. Um ser nobre e digno que merece o nosso respeito, amor e carinho. E ele sabe-o. Sempre está junto dum de nós. Não quer estar sozinho. quer sentir o calor dos seus donos enquanto ainda pode desfrutar dele. E tê-lo-á sempre até ao fim. P.S.: É conhecido o seu mau feitio, mais fruto do mimo que tem do que da sua índole. Uma coisa ele nunca gostou ao longo da vida, tomar banho. Sempre foi uma odisseia para nós o dar-lhe banho. Deixo-vos aqui uma foto do Nicolau, um meses depois de ter sido resgatado a tomar o seu banho. E que cara de desagrado ele tem!

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