Turma Formadores Certform 66

Wednesday, November 06, 2019

O espelho

Era já tarde da noite. A chuva caía copiosa tocada por um vento forte e frio. O néon que iluminava a rua quase era ofuscado pela intempérie. Seguia apressado em busca de abrigo. Completamente encharcado entrou num bar que encontrou aberto. Logo o bafo quente lhe bateu no rosto a contrastar com o frio lá de fora. Deixou na receção o guarda-chuva já um pouco empenado fruto da ventania e a gabardina completamente encharcada. Olhou em redor e viu mais do mesmo. Gente afogada em álcool e tabaco. Olhar distante porque a hora ia adiantada e copos já eram muitos. Encostou-se ao balcão em busca duma bebida que lhe aquecesse o corpo e a alma. No outro extremo viu alguém bem vestido com fato e gravata, bem longe da informalidade dos nossos dias. Logo pensou que seria alguém bem colocado profissionalmente embora o olhar triste e vazio lhe transmitisse outro sentimento. Deslocou-se para lá, de copo em riste e entabulou conversa com o desconhecido. Ao princípio este parecia que não queria companhia afogado nos seus pensamentos, mas aos poucos lá foi soltando a língua. 'Sabe' começou por dizer. 'Habitualmente não frequento estes locais. Mas hoje pensei que seria melhor. Sempre alguém aparece, o que nos faz sentir melhor do que estar em casa a estiolar pensamentos que nos podem levar a desfechos trágicos'. Depois olhou para a bebida e fechou-se no seu silêncio. Mas o intrometido visitante tentou saber mais alguma coisa. 'Tenho andado muito triste. Tão triste que já por diversas vezes pensei que a morte seria a redenção'. 'Mas porque diz isso?' quis saber o outro. Ele continuou. 'Há um par de anos era uma pessoa importante, daquelas que se diz terem o mundo aos pés. E eu tive o mundo aos pés. Mas o destino é cruel, e sem fazer nada para isso, um dia tudo mudou. Um acontecimento trágico fez com que a minha vida mudasse. Perdi a força anímica e a outra que nos faz lutar.' Voltou a fechar-se no seu mutismo, o olhar brilhante, não do álcool, que praticamente não tinha bebido, mas de algo parecido com emoção. O seu interlocutor tentou saber mais. 'Mas afinal que coisa tão complicada aconteceu na sua vida?' 'Não quero falar disso, apenas lhe digo que perdi família, emprego e não tive forças para lutar. Foi como se uma espécie de maldição tivesse caído sobre mim. Assim sem saber como, nem ter feito nada para isso. Coisas pessoais que me é doloroso partilhar.' De novo o silêncio se entrepôs entre este dois homens apenas ocupado pelo bulício que se faz sentir em locais destes. De novo o primeiro tentou puxar conversa, mas desta vez sem sucesso. Quando olhou para os olhos do outro homem viu duas grossas lágrimas a correr pela face. O homem, que até aqui nunca tinha olhado para ele, fixava agora o olhar no seu copo praticamente cheio como se de lá viesse um qualquer génio para lhe mudar a sorte e a vida. De repente ergue-se e saiu sem sequer se despedir. O outro ficou a pensar na sua vida e naquilo que este intruso, fruto dum encontro casual, lhe tinha dito. Ficou a pensar na similitude do que tinha ouvido e de como tudo aquilo se assemelhava à sua triste e cinzenta existência. Sentiu-se mal. Era como se tivesse estado a dialogar em frente a um espelho. E de novo os seus fantasmas apareceram. A sua caixa de Pandora tinha-se aberto mais uma vez, logo a ele que tinha tanto cuidado em mantê-la fechada. Pagou e saiu a correr na tentativa vã de encontrar de novo esta estranha companhia de à pouco. Mas não viu ninguém. Apenas sentiu a chuva forte que o guarda-chuva não segurava a bater-lhe na cara, aquele frio que neste momento até lhe sabia bem sentir a acariciar-lhe o rosto. E, conformado, lá seguiu viagem engolido pela noite mas agora vergado ao peso dos seus maus pensamentos que o esmagavam e que ainda há pouco era como se não existissem. Entretanto, a chuva e o vento continuavam indiferentes ao drama de estes dois homens. Ambos perdidos na noite mais negra e profunda dos seus pensamentos.

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