Turma Formadores Certform 66

Tuesday, September 01, 2020

Um anjo na noite - 1ª parte

O bar estava cheio. O fumo enchia o espaço qual nevoeiro acre e cerrado. Vozes cruzadas em conversas várias pautadas pelo tilintar dos copos que transportavam bebidas a gargantas sedentas. A música dolente fazia-se ouvir da velha jukebox. Blues suaves para dar com aquele ambiente. Puxado a um canto do longo balcão um homem só de olhar vazio e copo cheio que agarrava com avidez. Olhava para o nada, pensamentos esvoaçando. Em breve, e como é normal nestes espaços, uma mulher aproximou-se. Estava só, coberta com aqueles casacos de pelo bem quentes tão tradicionais de New York. Abriu o casaco que a cobria quase até aos pés para se sentar deixando ver um corpo esbelto, bem cuidado, com um peito volumoso para que todos olhavam. Era loira de um loiro que quase roçava o esbranquiçado, olhos azuis esverdeados, naquela mescla de cor que deixa qualquer pessoa na dúvida. Mãos bem tratadas de unhas proeminentes. Quando o empregado a viu logo foi ter com ela. “A senhora deseja algo?” perguntou na sua voz expedita não deixando de olhar para o decote que se lhe abria perante os olhos. Ela não respondeu. Fez um gesto com a mão de que não e que a deixasse em paz. O empregado percebeu e afastou-se. O homem ao lado parece que ainda não tinha dado por ela. Vestido num belo fato que parecia feito à medida tal era o rigor com que assentava no corpo, cabelo preto onde começavam a despontar algumas madeixas mais claras, dando aquele aspeto grisalho a despontar. O copo continuava na mão rodando entre os dedos. Ainda estava cheio e só o seu olhar continuava fixo naquele vazio inexpressivo. A mulher olhou-o fixa e demoradamente. Acabou por entabular conversa. “É de cá?” perguntou. Ele disse que sim com a cabeça. “Quer sentar-se a uma mesa para conversarmos?” Ele voltou a acenar com a cabeça mas desta vez para dizer que não. E ali ficaram em silêncio mais uns minutos enquanto os blues indolentes embalavam o ambiente. De repente, por curiosidade ou talvez não, ele ergueu os olhos para a loira que permanecia firmemente a seu lado sem dar ares de querer ir-se embora. A sua expressão vazia mudou, parecia que estava a reconhecer aquele rosto mas não sabia de onde. Mas achou por bem não perguntar nada. Afinal era mais uma daquelas mulheres da noite que aparecem pelos bares em busca de companhia e de dinheiro, pensou. Embrenhou-se de novo nos seus pensamentos. As coisas estavam mal e a saída não parecia existir. Estava exausto e confuso tal como há um par de anos atrás quando daquele mesmo bar saiu para por termo à vida apenas evitado por uma transeunte que passava e, apercebendo-se da situação, o encaminhou noutra direção. Aquele rosto quase angelical tinha-o marcado então. Olhou de novo para a mulher a seu lado que permanecia com o olhar fixo nele e viu semelhanças. Não, não podia ser a mesma pessoa depois de tantos anos. Afinal o cabelo era um pouco diferente e os olhos eram mais azuis, disse para consigo, afastando da sua mente a possível coincidência. Indiferente ao que se passava no balcão, o bar continuava a fervilhar sempre com aquele som blues a sublinhar o ambiente. Entretanto, a mulher aproximou-se do homem que continuava absorto nos seus pensamentos e disse-lhe para saírem para a rua. O ambiente estava a ficar pesado, o excesso de fumo tornava quase irrespirável o espaço. Ele aquiesceu. Ele pagou a despesa dum copo que nunca bebeu e ambos saíram para a rua. A noite estava cerrada apesar de não conseguirem ver o céu pela proliferação de néons e pela altitude dos arranha-céus. New York tinha destas coisas. Era uma floresta de betão onde mal se conseguia ver o céu muito menos o horizonte. A rua fervilhava de trânsito numa cidade que nunca dorme. Ela convidou-o para ir a sua casa. Ele achou bizarro porque normalmente deveriam ir para um motel, e há muitos na ‘Big Apple’, mas aquela mulher que ele foi rotulando duma qualquer prostituta afinal talvez não fosse tanto assim. E aqui, mais do que tudo, foi a curiosidade que o moveu. 

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