Um anjo na noite - 1ª parte
O bar estava cheio. O fumo enchia o espaço qual nevoeiro acre e cerrado.
Vozes cruzadas em conversas várias pautadas pelo tilintar dos copos que
transportavam bebidas a gargantas sedentas. A música dolente fazia-se ouvir da
velha jukebox. Blues suaves para dar com aquele ambiente. Puxado a um canto do
longo balcão um homem só de olhar vazio e copo cheio que agarrava com avidez.
Olhava para o nada, pensamentos esvoaçando. Em breve, e como é normal nestes
espaços, uma mulher aproximou-se. Estava só, coberta com aqueles casacos de
pelo bem quentes tão tradicionais de New York. Abriu o casaco que a cobria
quase até aos pés para se sentar deixando ver um corpo esbelto, bem cuidado,
com um peito volumoso para que todos olhavam. Era loira de um loiro que quase
roçava o esbranquiçado, olhos azuis esverdeados, naquela mescla de cor que
deixa qualquer pessoa na dúvida. Mãos bem tratadas de unhas proeminentes.
Quando o empregado a viu logo foi ter com ela. “A senhora deseja algo?”
perguntou na sua voz expedita não deixando de olhar para o decote que se lhe
abria perante os olhos. Ela não respondeu. Fez um gesto com a mão de que não e
que a deixasse em paz. O empregado percebeu e afastou-se. O homem ao lado
parece que ainda não tinha dado por ela. Vestido num belo fato que parecia
feito à medida tal era o rigor com que assentava no corpo, cabelo preto onde
começavam a despontar algumas madeixas mais claras, dando aquele aspeto grisalho
a despontar. O copo continuava na mão rodando entre os dedos. Ainda estava
cheio e só o seu olhar continuava fixo naquele vazio inexpressivo. A mulher
olhou-o fixa e demoradamente. Acabou por entabular conversa. “É de cá?”
perguntou. Ele disse que sim com a cabeça. “Quer sentar-se a uma mesa para
conversarmos?” Ele voltou a acenar com a cabeça mas desta vez para dizer que
não. E ali ficaram em silêncio mais uns minutos enquanto os blues indolentes embalavam
o ambiente. De repente, por curiosidade ou talvez não, ele ergueu os olhos para
a loira que permanecia firmemente a seu lado sem dar ares de querer ir-se
embora. A sua expressão vazia mudou, parecia que estava a reconhecer aquele
rosto mas não sabia de onde. Mas achou por bem não perguntar nada. Afinal era
mais uma daquelas mulheres da noite que aparecem pelos bares em busca de
companhia e de dinheiro, pensou. Embrenhou-se de novo nos seus pensamentos. As
coisas estavam mal e a saída não parecia existir. Estava exausto e confuso tal
como há um par de anos atrás quando daquele mesmo bar saiu para por termo à
vida apenas evitado por uma transeunte que passava e, apercebendo-se da
situação, o encaminhou noutra direção. Aquele rosto quase angelical tinha-o
marcado então. Olhou de novo para a mulher a seu lado que permanecia com o
olhar fixo nele e viu semelhanças. Não, não podia ser a mesma pessoa depois de
tantos anos. Afinal o cabelo era um pouco diferente e os olhos eram mais azuis,
disse para consigo, afastando da sua mente a possível coincidência. Indiferente
ao que se passava no balcão, o bar continuava a fervilhar sempre com aquele som
blues a sublinhar o ambiente. Entretanto, a mulher aproximou-se do homem que
continuava absorto nos seus pensamentos e disse-lhe para saírem para a rua. O
ambiente estava a ficar pesado, o excesso de fumo tornava quase irrespirável o
espaço. Ele aquiesceu. Ele pagou a despesa dum copo que nunca bebeu e ambos
saíram para a rua. A noite estava cerrada apesar de não conseguirem ver o céu
pela proliferação de néons e pela altitude dos arranha-céus. New York tinha
destas coisas. Era uma floresta de betão onde mal se conseguia ver o céu muito
menos o horizonte. A rua fervilhava de trânsito numa cidade que nunca dorme.
Ela convidou-o para ir a sua casa. Ele achou bizarro porque normalmente
deveriam ir para um motel, e há muitos na ‘Big Apple’, mas aquela mulher que ele
foi rotulando duma qualquer prostituta afinal talvez não fosse tanto assim. E
aqui, mais do que tudo, foi a curiosidade que o moveu.
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