Turma Formadores Certform 66

Saturday, May 06, 2023

Enquanto os anjos choram

Enquanto os Anjos choram. Também eu vou partir. Não irei ficar muito tempo. Também eu vou deixar de sentir e ver as lágrimas dos Anjos. Sim, as lágrimas. O que será a chuva senão as lágrimas dos anjos que choram? São eles a chorar. Eu sei disso. Não me venham com explicações sem sentido porque eu sei que eles estão a chorar. Enquanto ele dormia, sussurrei-lhe ao ouvido que também eu iria partir. Queria dizer-lhe isso mas ao mesmo tempo não queria que ele soubesse que era mais rápido que o que pensava. Afinal, íamos todos jantar fora, íamos sair, beber um copo, palmilhar esta cidade que tanto adoro, o Porto. Mas não aconteceu. Também eu vim para cá para partir. É esta a minha última morada. Era o que dizia quando me perguntavam porquê. Porque quiseste vir? Há, a tal escuridão de que falavam e que faziam questão de lembrar... Uma cidade escura, onde eu via brilho. Uma cidade pequena, onde eu sentia o tamanho do mundo. Uma cidade fria, mais fria, mais chuvosa, onde os Anjos mais choravam. São eles a chorar. Por nós, pelo mundo, pelas pessoas. Eles choram sabiam? Abriu os olhos. Os lençóis são brancos. Do lado esquerdo uma janela. Passam algumas pessoas ao fundo. Existem máquinas, fios, um copo de água numa pequena mesa de metal creme. Lá fora, pela tal janela, vimos aquilo a que todos chamam chuva. São eles. Estão a chorar. Sabem que ele vai chegar em breve. Eu também. Muitos outros vão chegar. De um momento para o outro tudo muda. O nosso jantar. O nosso passeio. Enquanto isso, estamos desfocados. Perdidos. Demasiado ocupados onde não deveríamos estar muitas vezes. Perdemos tempo. Tempo. Esse precioso. Pausamos onde não devíamos sequer respirar. Demoramos onde não nos querem, onde não pertencemos. Dizem que está tudo marcado. O caminho. O porquê de ficarmos ou não. Dizem que existe lá em cima alguém que manda. É ele que decide. Dizem que voltamos. Voltarei? Se voltar, não quero sofrer. Não quero ouvir histórias tristes. Só quero ir jantar contigo. Beber um copo. Não quero ver esses lençóis brancos onde aguardas a tua hora de te despedir e vês lá fora os anjos a chorar. Estou agora numa esplanada. Começou a chover. As pessoas correm. Escondem-se. Não gostam de sentir as lágrimas. Claro que não. As lágrimas são de tristeza. Estas são. Passa um rapaz com um cão. Aproxima-se da esplanada. Existem chapéus abertos. Refugia-se debaixo de um deles. Branco. Como os lençóis. O cão olha para mim fixamente. Parece que me lê a mente. Sorrio. O cão continua fixo a olhar. Sabiam que eles sentem coisas que os humanos não sentem. O rapaz olhou para mim, para o cão, novamente para mim. Diz-me, "Ele não morde, é meigo". Talvez pensasse que eu estava com medo. Eu sei, estávamos apenas a conversar os dois. Mas, não iria dizer-lhe isto. Não passaria de mais um louco por aí. As lágrimas ficam mais fracas. Caiem com menor intensidade. E eu continuo ali. Olho o céu por uma brecha dos chapéus. Fixo um ponto mais claro. Talvez seja o brilho de um sorriso. O rapaz e o cão afastam-se. Mais na frente, o cão volta-se e olha de novo para mim. Sinto uma leve dor. Coisa sem importância. Não me vou preocupar. Todos temos dores. O cão fica agitado. O rapaz tenta controlá-lo. Uns segundos mais, e vai em paz. Vejo-os desaparecer pelo meios dos edifícios carregados de azulejos coloridos. Assim como ele falou para mim, o cão, falem também com os vossos animais, os vossos amigos, amores, paixões, os vossos mais que tudo sejam eles quem forem. Enquanto podem... Tudo passa como o vento. A vida é uma cabana feita de lençóis, brancos, que no primeiro vendaval, nos leva, e nos impede de voltar a sentir a chuva. A chuva, dizem... Mas eu sei que são os Anjos a chorar. Vou estar por aqui. Vou observar. Pensar nos que não consegui conquistar, os que não se me chegaram seja porque motivo foi, embora, eu tenha tentado. Vou pensar também nos que toquei com o meu coração. Vou falar sozinho. Observar os cães. Os que falam comigo. Todos. Vou tentar pedir a quem manda, um pouco mais. Para me deixar ficar, respirar, sentir. Vou querer estar por aqui mais um pouco. Talvez vocês ainda me vejam por aí, pela rua, a vaguear... Enquanto os Anjos choram.

Cláudio Porto

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