Da literatura do século XIX à política do século XXI
"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro. Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País. A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas. Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar." Isto poderia ser um qualquer remanso atual vindo de qualquer pessoa desagradada com a situação portuguesa dos nossos dias, mas não, isto é um escrito de Guerra Junqueiro nos idos de 1896. E isto deve-nos fazer pensar. Porque já passaram dois séculos e a atualidade é enorme. Parece que estas frases foram alinhadas ontem. Portugal tem vindo a ser expurgado duma certa dignidade ao longo de séculos. Já por diversas vezes trouxe aqui exemplos como este que nos devem fazer pensar. Afinal, dois séculos volvidos e a nossa vida parece que não mudou em nada. O entrar em declínio tem sido um desígnio, o pedir ajudar internacional uma constantes, o ver o país definhar um fatalismo. Talvez o tal fatalismo nacional, o fado, de que muitos falam, afinal não seja algo tão exótico assim. Hoje vivemos dias de ira e de amargura, mas os nossos antepassados também já o viveram. Antes não havia "troika" mas havia a banca inglesa sempre usurária que engordava à nossa custa. O que sempre tivemos foi um bano enorme de vampiros, esses mesmos que "come tudo e não deixam nada" para utilizar a feliz estrofe de José Afonso. Isso nunca faltou, nem há-de faltar nos tempos subsequentes. Apesar dos muitos atos de contrição que façamos hoje. Ninguém os leva a sério. A História de quase novecentos anos que é a nossa, os desmentiriam a qualquer momento. Quando nos preparamos para celebram os quarenta anos do 25 de Abril de 1974 é bom que tenhamos isso presente. Porque a História repete-se, nem sempre da mesma maneira, mas repete-se...
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