A poesia de Vitorino Nemésio - 3 - "Prece" (Num dia especial...)
Neste dia que pretende ser de celebração do que de bom encerra, também não deixa de indicar aquilo que de aziago trás no seu ventre. Daí que este é sempre um dia difícil em que me encontro dividido entre a esperança e o desespero, entre a alegria e a tristeza, entre a euforia e o desencanto. Como espero sempre que ele passe o mais rápido possível, vejo nele sempre o conflito entre a vida e a morte. A homenagem a uma mãe que deita ao mundo um ser e o desencanto de neste dia lembrar a mãe que já não existe. Deste conflito de contrários, de antagónicos pensamentos, nada melhor do que recorrer à poesia. Sobretudo àquela poesia que nos diz mais, ou melhor, ilustra com mais acuidade o momento, naquilo que se passa à nossa volta face àquilo que sentimos no nosso coração. Daí que vos trouxe, de novo, a poesia de Vitorino Nemésio (1901-1978), destacando um célebre poema inserido no seu livro "A Vida e a Morte" (1959) que tem por título "Prece". Diz assim:
"PRECE
Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,
Como quem deixa à porta o saco para o pão.
Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.
O que for, assim seja, à tua mão.
Tua vontade se faça, a minha não.
Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,
Do flanco de teu Filho copiado.
Corre água, tempo e pus no sangue quente:
Outro bem não me é dado.
Tudo e sempre assim seja,
E não o que a alma tíbia só deseja.
Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,
Que com pontas de fogo o podre se atormenta.
O teu perdão de Pai ainda não pode ser,
Mas lembre-te que é fraca a alma que aguenta:
Se é possível, desvia o fel do vaso:
Se não é, beberei. Não faças caso."
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