Turma Formadores Certform 66

Tuesday, March 24, 2015

Breve manual sobre os cofres cheios – versão para leigos

Publico aqui um extraordinário artigo, publicado no Economia e Finanças on-line de hoje, e que deve merecer a melhor atenção de todos.
"Colocamos um especialista em finanças públicas a falar com um leigo curioso para debaterem os “cofres cheios”. Ambos desejaram manter-se anónimos. Eis a transcrição da entrevista.

Leigo( L): É bom ter os cofres cheios ou não?

Especialista em Finanças Públicas (EFP): Se Portugal tivesse bom nome na praça nunca teria a necessidade de ter os cofres cheios ou pelo menos tão cheios.

L: Porquê?

EFP: Porque ter os cofres cheios com dinheiro que não nos pertence sai muito, mas mesmo muito caro.

L: Dinheiro que não nos pertence, mas como é que é isso?

EFP: Os cerca de 18 mil milhões de euros que temos em depósitos a prazo junto do Banco Central Europeu (BCE) são uma gota de água perto do mais de 200 mil milhões de euros que o Estado português está a dever. Na realidade o que o Estado tem feito cada vez que vai aos mercados pedir dinheiro para renovar os contratos de dívida que temos ou para financiar o nosso défice anual é pedir um pouco mais do que esse valor e depois tem posto esse excesso de parte, em depósitos. Ou seja, esse dinheiro que agora totaliza os 18 mil milhões de euros e que está depositado no BCE vem de dinheiro que pedimos emprestado e que estamos a pagar todos os anos, da mesma forma que pagamos os empréstimos que ajudam a pagar estradas, hospitais ou os juros dos juros ou qualquer outra despesa do Estado.

L: Não sei se percebi…

EFP: Explicando melhor, imagine que quando foi pedir dinheiro para comprar casa pediu, além do valor necessário para a casa, mais um extra para ter depositado na conta. Naturalmente esse dinheiro que tem no banco – os seus cofres cheios – pagam juro como o resto do crédito usado efetivamente para pagar a casa. É um bolso cheio que paga juros. E no caso do Estado, nesta altura do campeonato até paga juros duas vezes. Fiz-me entender?

L: Creio que percebi mas que história é essa de pagar juros duas vezes? E isso é possível?!

EFP: Sim, é um efeito nefasto da política monetária do Banco Central Europeu, a mesma que tem patrocinado taxas de juro historicamente baixas nos mercados e que tem permitido pedir dinheiro emprestado mais barato.

L: Mas ainda não percebi. Como é que os “cofres cheios” pagam juros duas vezes?

EFP: É simples. Pagam os juros do crédito de que já falei e, por outro lado, como estão depositados no Banco Central Europeu que tem juros negativos, em vez de receberem juros pelos depósitos ainda pagam, neste momento, uma taxa de -0,2%.

L: Juros negativos? Mas porque é que o Banco Central Europeu em vez de pagar juros pelos depósitos que recebe ainda cobra?

EFP: Porque o BCE quer que os bancos que costumam lá deixar o dinheiro depositado comecem a emprestar às empresas e famílias e por isso penaliza-os se insistirem em deixar lá dinheiro parado. O Estado português ao depositar lá o dinheiro apanha por tabela e quanto mais tempo lá deixar o dinheiro menos terá no final.

L: Mas a ministra das finanças diz que esse dinheiro é importante para estarmos protegido de um problema qualquer nos mercados…

EFP: Sim, pode ter razão. A verdade é que continuamos extremamente dependentes da política monetária do BCE e da evolução do debate político dentro da Zona Euro. Tem sido o compromisso do BCE em suportar o euro e, mais recentemente, o seu compromisso e prática corrente de ir ao mercado comprar dívida pública que tem feito descer as taxas para mínimos históricos em muitos países da região. Se isto for de alguma forma colocado em causa ou se a estabilidade política e financeira da Zona Euro entrar em crise, tudo pode mudar dramaticamente muito depressa. O acesso aos mercados pode ficar comprometido e substituir dívida que se vence por dívida nova pode passar a ser impossível. Um sarilho parecido com aquele em que ficámos em 2011.

L: Mas esse risco é real? E afinal quanto custa ter esses cofres cheios? As taxas não estão baixas?

EFP: Se esse risco não for real porque haviamos de estar a juntar tanto dinheiro para ter de reserva sabendo que é um negócio tão caro? Quanto à sua segunda pergunta, partindo dos 18 mil milhões de euros que tinhamos em depósitos no BCE há pouco tempo, custa desde logo cerca de 36 milhões por ano no que se tem de pagar ao BCE para ter lá o dinheiro depositado e depois têm de se pagar os empréstimos que nos permitiram ter esses 18 mil milhões depositados. Não sabemos exatamente qual é a taxa de juro mas se assumirmos que terão sido contratados à taxa média de 3,5% (que deve andar próximo da que pagamos pela nossa dívida pública total, os tais mais de 200 mil milhões) podemos estar a falar de um custo de mais 630 milhões, ou seja, cerca de 666 milhões de euros ao todo por ano, ou se quisermos, um mês de despesa de todo o ministério da saúde.

L: Mas o governo tem dito que a situação económica é que tem permitido assegurar as taxas atuais e a confiança dos mercados. Não é verdade?

EFP: Repito, se assim fosse para que seria necessário ter os cofres cheios? Quando um Estado ou empresa ou pessoa é de boas contas, credível e economicamente saudável nunca tem dificuldades em obter crédito, na realidade, todos lho oferecem e, como tal, não precisa de guardar grandes volumes de dinheiro ainda para mais perdendo dinheiro com as taxas negativas.

L: Então o que o governo diz é mentira?

EFP: Vejamos as coisas nestes termos: o contributo mais importante do governo tem sido o de se manter alinhado com as exigências que o BCE e a troika têm feito em relação ao que acham ser o caminho a seguir pela nossa economia e poder político. Essa tem sido a forma de assegurar que o BCE nos continua a pôr a mão por baixo, a financiar os bancos portugueses, etc. Mas de um ponto de vista económico, do ponto de vista dos grandes indicadores, Portugal está longe de ter argumentos que lhe permitissem regressar aos mercados sem essa bóia do BCE. A dívida pública continua a subir e mesmo com o PIB a crescer está a fazê-lo mais devagar do que tem crescido a dívida pelo que o país está a dever cada vez mais dinheiro face ao que consegue produzir. Por outro lado, ao longo destes anos de austeridade, não só perdemos centenas de milhar de trabalhadores para a emigração e para a inatividade como as próprias empresas ao não terem investido ou sequer substituído equipamentos que envelheceram estão agora com muitas dificuldades em aproveitar o crescimento económico que vem de fora e que o BCE e o ciclo económico internacional tem vindo a tentar promover.

L: Ou seja, o que o governo tem conseguido, mesmo com fracos resultados, é suficiente?

EFP: É suficiente para que possamos beneficiar das medidas de emergência implementadas para toda a Zona Euro. Medidas que, diga-se em abono da verdade, têm uma orientação política clara muito próxima da defendida pelo governo português. Veja bem, não é por acaso que quase todos os países têm hoje as taxas de juro mais baixas da sua história. Não é propriamente uma particularidade de Portugal. O que o governo fez é a condição necessária para comprar o “bilhete” que dá direito à política do BCE mas não é condição suficiente para sermos autónomos ou sustentáveis só por nós. Isso já dependeria da avaliação dos mercados, alheia a considerações políticas estritas. Aliás, provavelmente, como disse, estamos até pior em termos de dependência do que em qualquer outro momento na nossa história recente. A verdade é que, em quase todos os indicadores habitualmente valorizados pelos mercados, estamos pior do que em 2011. A diferença é que há um compromisso do BCE que nos isola das nossas próprias vulnerabilidades.

L: Mas então… os cofres cheios são para?

EFP: O governo ao querer ter o cofres cheios está implicitamente a reconhecer que a qualquer momento a atual situação de acesso aos mercados pode mudar sem que ele tenha qualquer controlo sobre os eventos. Lá está, a tal fragilidade que o discurso político nega, mas que esta política de apostar em cofres cheios confirma.

L: E o que pode provocar essa mudança para pior?

EFP: Há muitos fatores, alguns mais espetaculares outros menos. Note que pode ser simplesmente o facto de as principais economias europeias deixarem de justificar a política atual do BCE. Se no futuro o que for importante para a economia Alemã for diferente do que é importante para a Portuguesa, o BCE irá alterar a sua política para lidar com a maior economia europeia, por exemplo, terminando com a política de preços baixos [preços do crédito]. E isso pode ser um sarilho para quem está tão endividado. Por outro lado, se houver um problema sério na Grécia com a sua eventual saída do euro isso pode gerar um movimento de desconfiança dos mercados direcionado a Portugal – de que vimos um exemplo em outubro de 2014. Pode ainda acontecer que a conjutura económica mundial piore e que com isso nós tenhamos de novo que passar por um período de grande fragilidade.

L: Mas então o dinheiro dos cofres permitir-nos-ia viver melhor durante esses problemas. Afinal é uma boa ideia.

EFP: O dinheiro em causa apesar de parecer muito é apenas um gota de água face às necessidades de médio prazo da economia portuguesa. Só em 2015 precisamos de 11 mil milhões de euros, em 2016 será necessário muito mais do que isso, uma parte para financiar o défice do Estado e outra para pagar dívida que se vence e que temos de substituir por dívida nova. Este dinheiro, se acreditarmos que pode estar iminente uma grave crise na Zona Euro, pode salvaguardar-nos durante uns meses. Pode dá-nos tempo para pensar no que fazer e como fazer sem que haja de imediato um choque, mas se a fonte do problema perdurar, o dinheiro esgota-se dado que nesse cenário provavelmente teremos perdido acesso aos mercados a taxas comportáveis. Por isso, ter essa almofada é tão mais importante quanto maior for a nossa fragilidade percebida hoje.

A verdade é que se Portugal tivesse hoje uma imagem efetivamente robusta nos mercados internacionais não precisaria de ter milhares de milhões de euros parados. Essa necessidade é real precisamente porque os mercados percebem Portugal como o segundo país mais frágil imediatamente a seguir à Grécia.

L: Que confusão. Então… deviamos esvaziar o cofres?

EFP: Não necessariamente. Este é um dos vários mecanismos de gestão da dívida. A realidade é que o nosso nível de fragilidade é mesmo grande e por isso, faz sentido ter alguma almofada sabendo que esta deve ter uma dimensão razoável dado que quanto maior for mais ela própria contribui para o problema de fundo que é o da insustentabilidade da dívida. E neste caso, ao contrário do que pode acontecer com outros empréstimos que façamos para dinamizar investimento, formar melhor as pessoas, melhora a saúde, etc, nunca vai oferecer retorno. Ele apenas servirá, quanto muito, para amortecer o sofrimento, o choque de alguma surpresa nefasta. Não será de somenos, note bem, mas será sempre numa perspetiva de diminuir a dor, nunca de resolver o problema.

L.: Hum. Então quanto devemos ter nos cofres, na sua opinião?

Este dinheiro é como um seguro que durará pouco tempo e que é caro. Por isso saber de quanto deve ser o valor depositado depende da nossa previsão sobre o futuro e das alternativas que tenhamos para esse dinheiro. Se estamos muito frágeis, e estamos, devemos fazê-lo. Por outro lado é preciso nunca esquecer que para termos esta almofada estamos a deixar de investir noutras áreas e a pagar uma quantia importante de juros. Eu diria que ter o equivalente a 12 meses de necessidades de financiamento me parece comportável e equilibrado, mas é um número discutível.

É preciso não esquecer que temos os cofres cheios de dinheiro emprestado. 

L: Ok. Obrigado."

Penso que depois de lerem este grande artigo, todos percebam o embuste para que nos arrastaram, embora o discurso político seja bem diverso.

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