Turma Formadores Certform 66

Monday, May 11, 2015

Estórias dum outro mundo bem diferente

Desde jovem sempre gostei de interagir com outras culturas, outros povos, outras línguas, outras maneiras de olhar o mundo. Isso levou-me a contactar gente doutras paragens, e mais tarde, a viajar nessa ânsia de desbravar o mundo que ali estava à minha espera. E nessa ânsia de descoberta queria aqui partilhar convosco algo que me tem feito pensar desde há muito tempo. São duas estórias - poderiam ser muitas mais - de pessoas improváveis, caminheiros do mundo, que nos acrescentam sempre algo de novo e precioso. O continente é, posso dizê-lo, improvável. Trata-se de África. Esse continente tão sofrido e sofredor, de norte a sul, sem que se perceba onde pode existir um pouco de espaço para se fazer a diferença. Longe da nossa Europa rica, (apesar de nós termos uma visão diferente por causa da crise, ou de não podermos ter acesso aos bens de luxo que vemos outros ostentar), África sempre foi um continente feiticeiro e enfeitiçado, como dizem alguns que lá viveram. Mas também um continente de miséria, daquela que toca as raias do profundamente simples para a nossa mentalidade de europeus. Um dia, quis o destino que me cruzasse com um missionário da Consolata, ali para os lados da Maia onde vivi. Era nigeriano, com aquela negritude profunda quase luzidia dos naturais dessa região. Falava-se das "dificuldades" que por cá se viviam, - as áspas não estão aí por acaso -, e ele sorria, com aquele sorriso branco e claro, franco até, de quem não entendia do que eu falava. (Cumpre afirmar que ele tinha vivido alguns anos em Roma e por isso conhecia bem a mentalidade europeia e ocidental). Então, a meio da conversa, vendo que eu estava um pouco desconcertado com o seu sorriso, disse: "Hoje estou feliz, muito feliz!" E passou a explicar. Na sua aldeia, donde ele era oriundo, a água era escassa, um bem precioso até. Ele tinha comparticipado com algum do seu salário para que a aldeia pudesse ter um furo, um poço, para obter água. Ele foi lá para a inauguração e contava-me da alegria dessa gente e como ele se sentia feliz por ter participado. Dizia-me: "Vocês não sabem o que isso é, nem percebem o seu significado. Abrem a torneira e têm água e, por vezes, até a deixam aberta a desperdiçar esse bem que tão precioso é para nós". E acrescentava: "Se vocês não a tivessem, se ela fosse escassa, e vocês vivessem com temperaturas extremamente elevadas, vocês perceberiam o que vos quero transmitir". Esta estória já tem um anos, mas sempre me ficou na mente. E sobre ela já escrevi variegadas vezes. Mas ontem, cruzei-me com outra pessoa, também ela um caminheiro do mundo, também missionário, desta feita Comboniano, embora português de nacionalidade. Dizia-me ele que tinha vinte anos de África. Conhecia-a muito bem. Tinha vivido no Chad muitos anos e era do Chad - para onde vai regressar em breve - que ele me queria falar. Disse-me que uma vez, na aldeia onde ele vivia, uma criança de dez anos o abordou bem de madrugada ainda, e disse-lhe: "Venho-te dizer que a minha irmã nasceu esta madrugada". Ao que ele teria respondido que era uma ótima notícia, agradecendo ao pequeno mensageiro a boa nova. Só que ele não desarmou e disse: "A minha mãe disse-me para vir aqui pedir-te um pouco de sabão, se tiveres, para lavar a minha irmã. Será que tens?" Ele tinha e deu-lho de bom grado. Passado algum tempo, o jovem voltou, e o nosso homem, com algum ar folgazão, disse-lhe: "Aqui de novo! Estou a ver que o sabão já acabou". O jovem respondeu-lhe: "Não. Venho aqui ver se tens uma caixa de cartão". "Tenho" respondeu o missionário. "Mas para que a queres tu?" O jovem chadiano respondeu sem hesitação: "Para fazer um berço para deitar a minha irmã". Estas são estórias de vida. Duma vida bem diferente da nossa com os mais jovens a exigirem ipods, ipads, tablets, computadores, telemóveis, como é usual ver-se. Que mundos diferentes habitamos, dentro deste outro mundo comum, este calhau que vagueia pelo espaço, e a que chamamos Terra. Estas são as diferenças entre um mundo que tem tudo - mesmo apesar da crise -, face àquele outro que nada tem - mesmo em "prosperidade" (coisa rara por essas paragens). Vivências que temos o dever de transmitir às novas gerações para que percebam que não podem ter tudo, e mesmo aquele pouco que por vezes têm, é muito face a quem não tem nada. Estas estórias são diferentes e, simultaneamente, tão iguais. E não pensem que são tão escassas assim. Falamos de África, mas poderíamos falar da Ásia - se já visitaram a Índia, Paquistão, Filipinas - verão que não vos estou a equivocar. Vejam a situação do Nepal depois do terramoto. Mas poderíamos ir à América Latina e tínhamos lá igual situação. Não me refiro à Latino América de Maradona ou Pelé. Mas aquela outra das favelas, dos "barrios", onde a pobreza extrema é explorada por gente sem escrúpulos. Estas são estórias dum mundo tão desigual e perverso, onde os ricos são cada vez mais ricos e os pobres mais pobres. Um mundo errado, onde algo está mal. Estas são lições de vida que aprendemos quando nos cruzamos com caminheiros do mundo. Daí que ache que o conhecermos outras latitudes é sempre importante, um outro curso que se dá aos mais jovens. Não para verem praias exóticas ou participarem em noites de excesso. Mas para ver gente como nós, para perceber outras culturas bem longe da nossa, para compreendermos que para além do nosso mundo há mais mundo, mas esse mais mundo, quase sempre é bem pior do que seríamos capazes de imaginar.

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