Quando o início de ano nos interpela
Como sabem, costumo fazer o meu exercício matinal ainda noite dentro, o que faz com que praticamente me cruze comigo próprio, ausentes que estão as gentes da azafama que virá algumas horas mais tarde. Assim, no percurso que faço praticamente não há vivalma. Acontece que uma das poucas pessoas que vejo pela matina é um pobre desgraçado que anda a recolher papel nos contentores do lixo. A princípio cada um seguia o seu caminho, mais tarde, começou a saudação matutina. Um dia, já lá vão uns anos, ele veio ter comigo para tentar ajudar uma senhora que tinha o carro estacionado num determinado local, a trabalhar e de faróis acesos e que ele dava por morta. Lá fomos, e depois de chamar as respetivas autoridades, a senhora lá foi para o hospital. Como um conhecido dele também acorreu, ele sempre que me via vinha dar-me notícias. A senhora parece que melhorou, embora pela situação em que estava, e pelo local onde tinha o carro estacionado, fiquei sempre com a sensação que era o suicídio que a senhora procurava. E foi assim através deste episódio que comecei a falar um pouco mais com este senhor. Eu seguia o meu percurso, ele o dele, e assim aconteceu por vários anos. Hoje, bem cedo ainda, cruzei-me de novo como ele. Já não o via à um par de semanas e pensei que tivesse ido para alguns familiares para passar as festas. Mas não. O senhor esteve hospitalizado para tratar uma hérnia. A operação não correu muito bem e teve que lá voltar para uma segunda intervenção cirúrgica para colocar uma folha de prata, segundo me disse, porque os intestinos tinham sido afetados. Como tivesse ficado um orifício que vertia os líquidos que ingeria, colocaram-lhe um saco com a promessa de que dali a algum tempo tudo tinha cicatrizado. Mas não foi assim. À um par de dias teria feito um 'arrozinho', segundo a sua própria expressão, e começou a ver o arroz a sair pelo tal orifício À medida que o ia ingerindo. Ficou em pânico e pensou, ainda segundo as suas palavras, 'agora é que vou lá para cima', pensando na morte iminente. Voltou ao hospital e depois de lhe terem limpo o orifício e de vários exames, mandaram-no embora dizendo que o orifício era muito pequeno e que iria cicatrizar em breve. O certo é que os líquidos que ingere continuam a sair e por isso o saco lá continua. Mas a promessa de melhoras ficou. Lamentava-se ele que, embora os médicos lhe dissessem para não fazer esforços, ele tinha que os fazer porque senão não tinha como viver. Até um pequeno subsídio que tinha e que não especificou, lhe teria sido retirado. Sem trabalho, sem apoio algum, qualquer um de nós se veria afogado em problemas. Este senhor não é exceção. Contudo, a sua força interior é enorme. Se a sua história recente me tinha impressionado, mais emocionado fiquei quando dele me despedi. Disse-lhe que se os médicos lhe disseram que em breve tudo estaria curado é porque seria assim, e que ele tivesse fé porque tudo iria correr bem. Desejei-lhe melhoras e um ano novo o melhor possível. E foi aqui que ficou marcada a imagem dum homem deserdado da vida, a viver na vereda da sociedade que o ignora como seu igual. Ele iniciou a sua caminhada com um velho carrinho de supermercado que lhe deram para ele transportar o papel acumulado que recolhe dos contentores e olhou-me com um sorriso muito luminoso, cumprimentou-me e disse-me: 'Vai correr tudo bem. Estou certo disso'. E seguiu o seu caminho áspero mas luminoso deixando-me a olhar para ele quase sem reação. Estas são aquelas lições que a vida nos dá. Pensamos sempre que estamos pior do que quem quer que seja, mas esquece-mo-nos que existe sempre alguém pior do que nós. Esta foi a primeira lição que este ano me trouxe. Foi a primeira interpelação deste novo ano. Logo ao segundo dia pela madrugada onde tudo adquire uma outra expressão e que aqui quero partilhar convosco.
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