Turma Formadores Certform 66

Thursday, November 07, 2019

As incongruências do intelecto e da praxis

Muito se tem falado nos últimos tempos sobre um tal Ventura que agora é deputado. Quanto a isso nada de especial. Mas tudo é bem diferente entre aquilo que é a praxis do tal Ventura face ao que intelectualmente pensa, ou melhor, pensou. E tudo isso pela atitude face às minorias que ele pretende contestar. Pois o tal Ventura que hoje acha que todos as minorias deveriam ser atiradas ao mar, foi o mesmo que na sua tese de doutoramento fazia a sua apologia. Coisa estranha essa, mas foi assim. Não quero aqui aferir da bondade ou não de um pensamento ou da praxis, coisa que não me interessa assim tanto. Mas gostava de dizer ao tal Ventura que, se calhar, ele teria mais razão na sua tese porque simplesmente o país que o viu nascer é um país de refugiados e emigrantes. Desde muito cedo tive a sorte de viajar pelo mundo e ver como viviam os portugueses em diferentes latitudes. Mas quero centrar-me aqui mais perto do nosso retângulo num país que foi elegido como um destino mais aprazível para os nossos emigrantes (refugiados), sobretudo a partir da década de 60 do século passado. Como já perceberam refiro-me à França. Desde os anos 60 este foi o principal país na rota dos emigrantes (refugiados) que Portugal foi produzindo. Refugiados por questões políticas, refugiados por não quererem ir para uma guerra que não sentiam sua e refugiados à miséria dum país que não tratava a maioria das suas gentes como seres humanos, (a que passamos a chamar emigrantes). Mas para além desta rota de refugiados do país de Camões, seria importante ver as condições em que eles viviam. Talvez alguns de vós já tenham ouvido falar dos 'bidonville'. Para quem não conhece, os 'bidonville' eram os bairros de lata onde vivia a maioria da comunidade portuguesa, - que se foram formando nos arrabaldes de Paris -, sem condições de higiene, educação e outras, muito se assemelhando à tristemente célebre 'Selva' que as televisões mostram em Calais. Onde as ruas eram feitas de lama para onde os dejectos eram atirados. Gente vestida com roupas andrajosas ou com aquelas que alguns franceses lhe doavam por piedade. (Ainda me lembro duma família que comia numa mesa com três pernas doada por uma família francesa sendo a restante completada por alguns tijolos). Tudo muito igual ao que vemos em Calais nos nossos dias. (E tal só foi terminando pela ação dum presidente da República de nome Jacques Chirac, um grande amigo dos portugueses, que nos deixou à cerca de um mês). Mas não pensem que era só em Paris. Quem descesse para o sul e passasse por Toulouse via o mesmo, para já não falar na cidade portuária de Marselha. (A comunidade portuguesa, hoje muito respeitada, e até participante na política do país, teve um início bem confrangedor). Mas não pensem que era só em França. Via-se o mesmo no Brasil no início do século XX e, sobretudo, na Venezuela, dois países para onde os portugueses emigravam (se refugiavam) em tempos mais antigos. E a Venezuela também foi um país onde nem sempre os portugueses foram bem acolhidos. Não a Venezuela de Maduro que faz com que os seus refugiados venham pedir apoio e dignidade em Portugal, mas a outra Venezuela que não teve a mesma atitude para com os refugiados portugueses, liderados pelos Venturas dessas latitudes. Tudo isto é muito feio e muito triste. Há momentos na História dos povos em que se passa da 'mó de cima para a mó de baixo' - quase sem dar-mos por isso - e depois queremos que nos façam a nós aquilo que não fizemos aos outros em idêntica situação. É que não basta invocar o passado 'glorioso' - com Templários à mistura, Maçonarias e coisas similares - ignorando o outro lado, o lado negro da mesma História, que todos os países têm mas que fazem por não ver. E isto é válido para todos os Venturas que por aí andam - chamem-se eles Melo ou Amaro (os nomes aqui pouco importam) - que acham que os refugiados de hoje, (doutras latitudes), devem ser deixados à deriva no mar entregues à sua sorte. Muitas voltas dá a História e nada nos garante que um dia voltemos ao mesmo que já fomos noutro tempo e depois achemos que o país A ou B não é solidário apenas e só porque tem na sua governação um Ventura qualquer. A realidade dum país e dum povo, não é um filme daqueles que vamos ver ao cinema com som 'surround', é algo que nos deve fazer pensar. Não devemos olhar para isto como incongruências entre o intelecto e a praxis, como se de um filme série B se tratasse. São pessoas que estão em jogo, com as suas necessidades e as suas aspirações que, tal como nós, também têm direito à dignidade. O marginalizar esta gente é que conduz ao terrorismo e aos extremismos, a maneira de desarmar estas situações é a integração o mais plena possível. Há dias cruzei-me com uma jovem que estava a fazer o mestrado dedicado aos refugiados. Contou-me muito do que faz e aquilo que recebe em troca. Vi o brilho nos seus olhos - apesar da sua juventude - e a forma determinada com que continua a sua luta. Falou-me de muita coisa, até de coisas que eu nem conhecia. Foi enriquecedor. Quando a deixei pensei que esta não teria tido acesso às ideias do tal Ventura, ou talvez sim, não às ideias mas à sua tese. Sei lá, incongruências dum país de refugiados.

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