No limiar do sonho
Hoje venho prestar homenagem a um Homem que muito me ajudou e contribuiu para eu ser aquilo que hoje sou. Estou a falar do meu avô, José da Silva Matos. Homem de condição humilde, veio a acabar como empregado do Bank of London & South America, Limited. Foi uma figura tutelar para mim e para todos aqueles que o conheceram. Ainda hoje, 15 anos após o seu falecimento, ele é recordado por vizinhos e amigos. Quando estive ao serviço da Fundação para a Reabilitação da Zona Histórica do Porto, pediram-me para elaborar um texto para a exposição que algumas entidades iriam efectuar sobre o tema da zona histórica, foi assim que nasceu este texto/homenagem. No dia 21 de Junho de 2000 ficou concluído, e agora gostaria de o partilhar com vocês todos. Ele aqui fica:
"Estou junto à vidraça. A chuva lá fora crepita, esborrachando-se contra a janela. O vento fustiga a espessa folhagem das árvores que habitam o vetusto jardim. No gira-discos o som pesado da música, triste e nostálgica como o dia pintado de cinza que insiste em não deixar o sol sorrir.
Neste dia triste vêm-me à memória as imagens de parentes que já não conseguimos tocar no dia-a-dia. Especialmente essa imagem venerável de meu avô, que sempre insistiu em driblar a idade, permanecendo sempre rijo e activo quase até à hora em que nos deixou.
Sempre activo, com uma palavra encorajadora, ele que temia a morte ao dobrar da esquina, e que à medida que a velhice lhe ia corroendo a existência, o foi tornando mais forte, mais corajoso. A determinação de se ir juntar à mulher, minha avó, que entretanto já tinha partido, dava-lhe essa força.
No dia anterior à sua morte, fixou a parede ao fundo do quarto e disse: “ Que lindo jardim estou a ver, é para ali que vou. Se todos soubessem isso ninguém teria medo da morte “.
Com a lucidez que o caracterizava, e que o acompanhou até ao momento em que cortou o cordão umbilical com a existência material, ditou-me o epitáfio que queria ter na sepultura. No dia em que me deixou, ao despedir-se de mim, horas antes disse: “ Despede-te do teu avô porque o não verás vivo nunca mais “. E assim foi, horas depois recebi a notícia da sua morte. Até na morte soube controlar o tempo.
Dou comigo a pensar nisto tudo, e a chuva continua a bater forte na vidraça. A música continua arrastada lá no fundo, o frio vai-me embebendo os ossos.
Vêm-me à memória as brincadeiras da minha meninice, dos brinquedos no Natal, do fazer da árvore, do carinho com que ia comigo ao musgo e aos carvalhos para a cascata a homenagear os Santos Populares.
Neste momento acordo, com um dia radioso de Verão, com a felicidade de ter estado ali com ele de novo, ao estender do braço. Como foi bom voltar a ser menino, sentir o mesmo aconchego que durante tantos anos povoou a minha existência.
Que frágil a fronteira entre a realidade e o sonho. Será que estou a sonhar quando vivo, ou vou vivendo no sonho de um dia me reencontrar comigo mesmo?"
Request in Pace.
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