Carta à Margarida Ferreira em dia de aniversário
Os meus melhores cumprimentos.
Venho escrever-lhe esta missiva porque hoje celebra mais um aniversário. Não sei se segue ou não uma regra que tenho por muito avisada. Neste dia nunca celebro o aniversário, aproveito para fazer uma reflexão daquilo que foi o meu percurso de vida até aqui, aquilo que é hoje e aquilo que perspetivo para o futuro, embora o futuro para mim comece a escassear. Como tal, porque talvez não siga esta metodologia, venho fazê-la um pouco por si, sem disso lhe ter antecipadamente pedido permissão, e com possíveis afirmações, seguramente controversas, mas que julgo que a minha idade já vai permitindo fazer a uma pessoa que podia ser minha filha. Também quero aqui deixar a minha declaração de interesses para quem ler esta missiva. Admiro muito esta Senhora - com S maiúsculo, sim senhor -, pelo que é e, sobretudo, pelo muito que faz em prol dos animais. É uma verdadeira fonte de inspiração. Posto este preâmbulo cá me vou lançar nesta aventura com riscos inerentes, mas devidamente ponderados e assumidos.
E começo por aquilo que é mais evidente, o seu feitio irascível, que não permite a opinião a ninguém, a não ser a sua. O seu egocentrismo é de facto muito assumido o que a impede de ver mais além em determinadas situações. E é pena que assim seja, porque isso obscurece a sua formidável obra junto dos animais, que passa irremediavelmente para segundo plano. Disso sou testemunha quando afirma coisas por vezes temerárias de sustentação débil como sendo a verdade mais absoluta sobre a Terra. E para isso, não o faz só nos espaços que frequenta - o que seria o menos - mas nos espaços de terceiros onde trava batalhas inócuas sem que para isso necessite da autorização de seja quem for. Tudo é radical, extremista, e sei lá mais o quê, sem perceber que extremista é a Margarida nas posições que defende e para as quais quer arrastar as outras pessoas. (Sei de alguns problemas que a incomodaram e da doença que a persegue. Sei também que seria difícil a qualquer pessoa, confrontada com o mesmo, ser assumidamente menos revoltada). Mas a Margarida é assim e parece não haver nada a fazer. Embora isso lhe traga engulhos que depois se vê com dificuldades para ultrapassar. Fico triste com algumas coisas que leio, mas sei que em nada poderei interferir para as alterar. Da próxima vez fará o mesmo e assim continuará até que a poeira do tempo nos cubra definitivamente. E assim tenta, deliberadamente ou não, esconder o formidável coração que tem do qual a sua obra é bem largo testemunho.
Mas agora, depois daquilo que já disse (e que provavelmente está já a preparar a arma para disparar sobre mim) deixe-me que me dirija aos seus detratores que já devem estar a esfregar as mãos de contentamento, caso estejam a ler estas linhas. Pois vós que a atacais e lhe infernizais a vida, não sois melhores do que ela, apenas o seu reflexo em sentido oposto. É como se estivessem a ver-se a um espelho. E se achais a Margarida irascível, mal educada, intratável, - e se calhar com justificação para isso -, respondei-me a estas questões que já trouxe a este espaço mais do que uma vez. Assumidamente não sereis capazes de abrir a porta à Margarida, mas sê-lo-ies a um pobre e obscuro homem, funcionário público de profissão, sempre de negro vestido, que dá pelo nome de Fernando Pessoa? E já agora, aquele fanfarrão, brigão e mulherengo do Camões sempre metido em problemas por tudo e por nada? E aquele outro, esse intratável sujeito, de péssimo feitio e beberrão, dum Beethoven, sempre enfiado nas tabernas? E que dizer dum tal Leonardo nascido em Vinci que profanava sepulturas para retirar cadáveres onde estudava anatomia? Ou desse outro, Carravaggio figura importante do Renascimento italiano, assumidamente pedófilo? Ou dum Rafael, com a sua assumida homossexualidade? Ou ainda, se recuarmos no tempo, desse profeta e líder Jesus Cristo? (Não aquele que visitais ao domingo na missa, a quem prometeis perdoar a quem vos ofendeu, coisa que logo esqueceis quando saís da Igreja. Não é a este Cristo que me refiro, aquele que ficou cativos dos ricos e poderosos, mas do outro, o autêntico, aquele que lutou contra a ocupação romana e até contra os poderes dos seus iguais. Esse Cristo radical, extremista, - não sei se de esquerda ou direita porque nesse tempo ainda não havia essa geometria política dos nossos dias -, aquele que lutou até à morte pelas ideias em que acreditava). Será que éreis capazes de lhe abrir a porta? Se sim, então porque que a fechais com estrondo à Margarida? Se não, então tudo aquilo que fazeis não passa duma encenação. Da literatura e poesia que nunca lestes, da pintura e escultura que não compreendeis, da música que ouvis só porque é de bom tom e estatuto social, ou da fé que dizeis professar em nome duma quimera?
Sei que tudo isto é controverso, mas mesmo assim arrisco. Porque o que quero dizer é que a obra destas pessoas está muito para além delas e do que elas foram quando viveram no tempo que foi o seu. As pessoas passaram, as obras ficaram mais os mitos, mais ou menos românticos - talvez até romanescos - das personagens. A Margarida é um exemplo disso. Quando um dia o manto do tempo nos cobrir a todos, apenas a sua obra junto desses pobres seres sem voz, será o seu testemunho. E um dia, talvez até a Margarida seja personagem de romance, depois de expurgadas algumas arestas da sua personalidade. Quiçá uma estátua a preceito com discurso de circunstância. Acho que a Margarida também não tem feito por isso. Muitas coisas que diz e faz, acabam por obscurecer a sua obra tão nobre, e acabam por criar obstáculos em tempos mais controversos. (Aqui não me alongarei, a Margarida sabe do que falo e basta). Desculpe esta sinceridade de alma lavada mas, como disse atrás, talvez a minha idade seja uma boa desculpa, talvez a única, junto de si. Se é que o é de facto.
Esta é uma reflexão que gostaria de aqui deixar neste dia de aniversário tal como faço para mim mesmo. Não pretendo ofender quem quer que seja, - muito menos a Margarida por quem tenho uma autêntica veneração -, apenas tornar evidente as contradições que existem em todos nós e de que não damos conta. Mas o dia de hoje é de aniversário e não quero estragar-lhe a efeméride. Apesar da missiva já ir longa - será que ainda aí está, Margarida? - não gostaria de acabar sem uma palavra para a senhora sua Mãe. Porque este dia que é o do seu nascimento, é também o verdadeiro dia da Mãe, - da sua Mãe -, daquela que lhe deu o ser e que sofreu neste dia para que pudesse existir nesta vida. E como acho que a gratidão é um sentimento muito nobre, aqui estou a trazer a sua Mãe à colação. Ela, seguramente, não esqueceu esse dia e até será capaz de lhe contar tudo o que aconteceu, e como aconteceu, com os maiores pormenores. Para ela aqui fica as minhas homenagens e para si os votos dum feliz dia, dum feliz aniversário com muita luz no seu caminho, aquela luz forte e brilhante que trás à vida dos seres que ajuda a resgatar a uma morte certa, e já são muitos.
Agora sim, - uf! dirá você já entrincheirada e de dedo no gatilho -, porei um ponto final sem que antes lhe deseje o melhor para a sua vida porque ela é importante (seja porque preço for) para continuar a ajudar aqueles sem voz que fez causa da sua caminhada. E também pelo seu sobrinho que sei que adora (mas, por favor, compre-lhe outra camisolinha porque a cor com que o vi da última vez não o favorece em nada!!!) Um bem aja por tudo isso e que ainda muitos mais sejam fadados para serem resgatados a uma vida vil e de sofrimento. E por aqui me fico... finalmente.
Com os meus melhores cumprimentos.
José Ferreira
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