Em memória do senhor António que era carpinteiro
Ontem foi um dia triste para mim. Porque tristes são os dias quando se perde um amigo. Ontem ao meio da tarde, tive conhecimento da morte dum amigo e vizinho. Conheci este homem simples ainda criança. Já lá vai meio século. Apesar da minha curta idade, quando cheguei a esta casa e o tive como vizinho, ele sempre me tratou como se fosse um homem crescido. E como isso me dava orgulho. Não era só ele. Existiam mais três ou quatro que assim faziam. A partir de ontem, todos eles já desapareceram. Numa altura em que uma criança era tratada com alguma indiferença, - até porque se era criança até bem tarde -, a maneira respeitosa como me tratou sempre nunca deixou de me impressionar. À medida que fui crescendo, esse respeito foi crescendo também, - como se ainda existisse espaço para ele crescer. Mais tarde, quando evolui fruto da minha formação académica, ele passou quase a venerar-me. Coisa de pessoa simples que olha para uma pessoa que teve a sorte de ter uma educação mais evoluída como se de um deus se tratasse. Às vezes até me sentia embaraçado. Nunca deixou de me saudar tirando o chapéu que regularmente usava, numa saudação que eu não queria. Porque não me achava diferente, muito menos superior, a este homem simples de instrução básica e princípios mínimos. E por isso, ontem fiquei triste quando ouvi alguém falar dele com algum desdém. Alguém que no fundo, não é nem será nunca mais do que ele. E não pensem que é por colecionarmos bens que tomamos de empréstimo na vida, que passamos a ser superiores a outras pessoas. Porque apesar de mais novos, e desta estúpida sensação de que a morte é para os outros e nós somos imortais - apenas por momentaneamente termos ficado ainda deste lado do espelho -, apesar dos filhos que um dia onde determinar o nosso futuro quando já não o podermos fazer e talvez nessa altura digam o mesmo para que a nossa partida seja ainda mais dolorosa. Não. Recuso-me a ir por aí. Porque este homem era simples mas rico de sentimentos e de gestos. Cumpriu uma vida longa de 85 anos. Sempre forte e robusto, até que a doença que a idade potencia, o aniquilou. Sofreu na morte como algumas vezes na vida. Afinal esta provação que é a vida tem destas coisas. São os ensinamentos para crescermos. Ontem fiquei triste porque perdi um amigo e um vizinho. Um homem que sempre fez sentir a criança que eu era num adulto. Tinha nome simples e comum entre nós. Chamava-se António. Tinha por arte a profissão bíblica de carpinteiro que ele adorava. (Ainda hoje parece que o ouço a trabalhar a sua madeira de que tanto gostava). Foi simples. Foi muito trabalhador. Não tinha muito amigos que, a sua surdez profunda e desde longa data, impedia dada a dificuldade da comunicação. Vivia no seu mundo. Um mundo diferente. Um mundo sereno e de paz como sereno e pacífico sempre o conheci. Amanhã quando o seu funeral se realizar, quando a tampa do esquife se fechar pela última vez, encerrar-se-á o mundo que este homem conheceu. Mas a memória ficará. Ainda fui a tempo de o ver com vida no sábado passado. Ainda me reconheceu e me sorriu com um sorriso aberto e franco como era seu hábito. Ontem fiquei triste porque morreu um amigo e vizinho. Que me fez sentir gente bem antes do tempo. Descanse em paz, senhor António!
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