Turma Formadores Certform 66

Tuesday, February 18, 2020

Em torno da questão da eutanásia

Temos vindo a assistir a uma grande polémica em torno da eutanásia. Todos sabemos que se trata dum tema fraturante na sociedade, mas também com muita hipocrisia à mistura. Antes de avançar sobre o tema quero aqui fazer a minha declaração de interesses. Sou cristão, professo o catolicismo, pertenço àquele grupo que se chama de ´praticante' (um eufemismo que só conheço na religião católica) e, apesar disso, sou a favor da eutanásia. Clarificado este postulado vamos então ao que interessa, a eutanásia. Temos todos assistido - sejamos a favor ou contra - a um folclore em torno do tema, em vez duma discussão profunda e séria, de espírito aberto, como deve ser em temas desta monta. Eutanásia deriva da palavra grega 'thanatos' (Θάνατος em carateres gregos) que significa 'morte boa' ou 'morte piedosa'. (Uma nota para aqueles estudantes liceais do meu tempo relembrarem esta língua tão importante da cultura europeia). E penso que é mesmo isso que acontece. No sábado ouvi alguém dizer que 'o desligar a máquina num doente terminal pode ser um ato de amor'. Frase que pode ser controversa mas, se pensarmos bem, pode representar o outro lado do problema que tentamos ignorar. Assisti a uma reportagem na RTP com um doente paraplégico, que está neste estado à mais de cinquenta anos. E ele só pedia para olhar para os casos como o dele, sem retorno possível, assumindo que está a tentar a 'morte assistida' numa clínica Suíça para onde já enviou o seu pedido. Como este nosso compatriota, muitos outros existem cá, - como fora das nossas fronteiras -, a clamar por uma solução. A Igreja Católica aproveitou a onda para se juntar ao folclore, agora e à falta de melhor, vai clamando por um referendo. O padre da minha paróquia não foi exceção. Ontem falou muito sobre o tema, algumas vezes com algumas imprecisões que até não ficam bem a homem de tanta cultura - a menos que dê jeito torcer a verdade dos factos - e lá foi debitando a versão oficial. No final, e porque o conheço bem, fui ter com ele e coloquei-lhe algumas questões. Desde logo a essencial, se para a Igreja Católica o vida humana é uma dádiva divina - já agora porque será só a humana e não todas as formas de existência (?) - então como é que tal poderia ser referendada? Confesso que vi o senhor embaraçado, tentado justificar o injustificável, recorrendo a argumentos inconsistentes que foram desmontados rapidamente. Depois veio o clássico argumento do valor supremo da vida, aqui não me contive e tive que lhe lembrar o que fez a Igreja Católica nos tempos da Inquisição (que até chamavam de 'Santa' (!) ) e que valor a vida tinha para essas pessoas. O argumento era que foi noutros tempos de 'confusão doutrinal'. Se assumiu que nessa época houve 'confusão doutrinal' quem me garante que agora não estaremos a passar pelo mesmo? Depois veio o argumento de que Portugal foi dos primeiros países a abolir a pena de morte e como agora a quer legislar. Só que quando Portugal aboliu a pena de morte, as coisas não foram tão consensuais assim, sendo apodados de radicais os seus defensores - tal como o foram os que aboliram a escravatura - e para isso basta simplesmente ler algumas coisas da época. À falta de argumentos para uma discussão séria, a conversa lá foi esmorecendo com o argumento de ter assuntos para tratar. Fechado este capítulo bem esclarecedor, olhemos para o comum do cidadão. Quando se trouxe a lume esta proposta, logo os mais afoitos vieram dizer que era coisa de esquerdistas, e já agora, radicais para reforçar a nota. Só que enganaram-se. Afinal o PCP é contra - sempre o foi ao longo dos tempos e mantém a sua coerência - o que, à luz destas pessoas, o colocam como um qualquer partido de direita. Quem o diria? Mas desde logo o PSD - partido que reivindica o centro, que embora tendo nos seus estatutos a ideia contrária à eutanásia -, está muito dividido e inclusive o seu líder é favorável. Lá vai o PSD empurrado para a esquerda mais radical, lugar que quer evitar de todo. Agora, é a Dra. Graça Freitas - a Diretora Geral da Saúde - que vem dizer que não se opõe. (Para onde levarão a senhora?) E no meio disto tudo, vemos que a geometria política não funciona, e quem a pretende evocar facilmente cai no ridículo. E mesmo aqueles que querem um referendo só o pedem para adiar a situação. (Há estudos que mostram que se houvesse referendo a vitória do sim aconteceria à mesma). Curiosamente, ou talvez não, quando em 2018 se desenhou o mesmo cenário, ninguém veio pedir o referendo pela simples razão de que se sabiamque não seria aprovado. Passados dois anos a situação é bem diversa. Não pensem que sou um apologista da morte - assistida ou não - uma espécie de cavaleiro do Apocalipse. Mas, tal como na questão do aborto, acho que não tenho o direito de impor a minha vontade a quem sofre imenso e quer libertar-se da situação. Como dizia no passado sábado o paraplégico que falei atrás, 'se quem se opõe estivesse na minha situação não pensaria assim'. Não sou defensor da morte, repito, mas tenho que pensar para além do óbvio. Pensar naqueles que sofrem sem esperança de melhoras e que aguardam a morte como a sua libertação. E não posso impor o meu egoísmo a quem a vida já nada diz. Afinal tal só se aplicará a quem o pedir e estiver consciente disso e com sofrimento que o justifique. E àqueles que temem o chamado 'plano inclinado' penso que devem reformular o seu pensamento. O mesmo foi dito sobre a legislação do aborto e a existir um tal 'plano inclinado' foi no sentido contrário do que esperavam. Penso que é tempo de abrirmos os espíritos e não pensar que só os nossos egoísmos é que são o mote. Há muito mais para além disso. Desde logo a suprema liberdade de escolha do ser dito humano.

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