As árvores gritam ao morrer
As árvores gritam ao morrer. Só quem nunca esteve perto de um incêndio é que não sabe disso. Eu cresci com eles, noutros tempos. Sempre as ouvi gritar ao morrer. De dor. Uma espécie de assobio agudo que vai aumentando até se ouvir um estalo forte. Sentido. Eu costumava pensar que era a árvore a abrir o tronco para deixar sair a alma para o céu. A quebrar o corpo para deixar voar o espírito. Mas as árvores gritam ao morrer. Com as entranhas em brasa. Morrem de pé antes de serem deitadas por terra. O incêndio no Parque Natural da Serra da Estrela não tirou vidas humanas. Mas isso não chega. Não deve, não pode chegar. Porque houve outras mortes. E outros gritos. Porque as árvores gritam ao morrer. E morreram animais, selvagens, e outras espécies de plantas das terras altas. Alacraus, cobras, salamandras e lagartixas. Animais que poucos alguma vez viram na vida. Morreram. A imagem triste, arrepiante, de um javali, ainda jovem, a correr, desorientado, por terras queimadas deve deixar-nos inconformados. Incomodados. Corria sozinho, sem norte, por locais onde antes devia andar com a mãe à procura de alimento. E dificilmente vai sobreviver. Vai morrer como corria, assutado e sozinho, no meio das cinzas. O silêncio de quem se calou enquanto ardia um parque natural, património da humanidade, só faz sentido para quem nunca subiu às Penhas da Saúde e viu passar os rebanhos. O cão e o pastor. Para quem nunca partilhou com eles pão e queijo cortado à navalha. Para quem nunca subiu ao Cântaro Magro, nunca se deitou na relva no Covão da Ametade a ouvir o Zêzere a correr, pequenino, no local onde nasce. Só pode fazer sentido para quem nunca foi ao Poço do Inferno e percorreu, maravilhado, as cores da Rota das Faias. Para quem nunca desceu para Manteigas e parou na fonte, junto à estrada, para admirar o vale glaciar, um dos poucos do mundo. Para quem nunca subiu às Penhas Douradas para se perder entre lagoas e paisagens sem fim. Para quem nunca mergulhou nos rios e ribeiras da serra, rodeado de verde como o de Verdelhos. Para quem nunca rezou aos pés da Nossa Senhora da Boa Estrela. A guia dos Pastores. A imagem talhada em pedra, quase junto à torre. O silêncio de quem não apareceu, enquanto ardia um dos mais importantes pulmões do país, ouviu-se ainda mais quando as árvores gritavam ao morrer. Com as entranhas em brasa. Foram sete dias, sete. Serão anos para recuperar. Foram sete dias em que se ouviu a revolta espelhada no olhar e no rosto de quem por ali vive. De quem viu como morriam colheitas, árvores centenárias e animais. Vidas que, por vezes, são a melhor ou a única companhia de quem resiste e quer viver, e também morrer um dia, no interior do país. Foram sete dias em que se ouviu a revolta e o silêncio. E as árvores, que gritam ao morrer. Ouvem-se agora as promessas, de apoios e estudos. Como sempre vão esfumar-se, serão queimadas na vertigem dos dias. Porque os dinheiros de Bruxelas não são para criar vida no interior. Não são para fazer a correcta gestão florestal, defender parques naturais. Não são para as árvores que respiram por nós, para nos dar o ar que respiramos. A Serra só voltará a ter interesse quando for para dela tirar o lítio que tem nas entranhas. Pobre sorte, a da Estrela. Sim, há muitos responsáveis em tudo isto. Os maiores estiveram em silêncio enquanto as árvores gritavam. Porque as árvores gritam ao morrer.
Nota: roubei a foto à Patrícia Figueiredo Ela que me desculpe a ousadia. O texto é da Andreia Neves.
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