A crise financeira e a recessão - XXXI
O Profeta Samuel evoca na sua cena da mulher adúltera, a atitude corajosa do profeta Natã frente ao rei David, denunciando a grave injustiça por ele praticada na pessoa do seu súbdito, num manifesto caso de abuso de poder. Aqui se evoca também a atitude humilde de David, reconhecendo, sem evasivas, a sua culpa e confessando-a com toda a clareza e simplicidade: "Pequei contra o Senhor". Mais, aqui também se evoca a atitude misericordiosa de Deus face ao homem que se reconhece pecador. Misericórdia que se traduz num perdão total, alegre e sem condições. Misericórdia que é ainda força transformadora capaz de recriar o coração do homem e renovar-lhe a vida. Mais do que a transgressão de uma Lei, ele é o romper com a Aliança, com uma Amizade: uma recusa ao Amor, um mau uso da Liberdade. Tudo o que é exploração do outro, tudo o que é ofensa à sua dignidade e aos seus direitos é igualmente ofensa. Por isso David, ao reconhecer o crime praticado contra o seu súbdito Urias, confessa: "Pequei contra o Senhor". Vem isto a propósito das muitas confusões a que vimos assistindo, quer dentro de portas, quer fora das nossas fronteiras, nomeadamente, na UE. O que não pode acontecer é que continuemos a sofrer as restrições sem ver melhoras à vista e, sobretudo, sem uma explicação cabal, sobre aquilo que será o nosso futuro. E seria tão fácil esclarecer para mobilizar, em vez de impor para criar resistências. É fácil, lá bem longe, em Bruxelas, uns senhores decidirem que se deve fazer mais e mais restrições. Os seus chorudos ordenados, ampliados pelas ajudas de custo, fazem com que não entendam que existem pessoas a viver com duzentos euros e até menos. O patronato, aproveitando-se da situação, já vem pedir a flexibilização dos despedimentos e a redução das indemnizações a dar aos seus colaboradores. A precariedade é cada vez maior, a idade da reforma é cada vez mais alargada, enfim, o importante é que as pessoas morram no seu posto de trabalho, para que não existam encargos a afectar as reformas. Os impostos disparam, os salários são cada vez menores, o desemprego não mostra melhorias reais e sustentadas, enfim, dá a sensação de que estamos à beira do abismo, embora não sintamos que alguém se preocupe com isso. O Estado tende a equilibrar o seu déficit pelo lado da receita, quanto à despesa, nada acontece de significativo. A quantidade de deputados que temos, que ganham muito bem para aquilo que produzem, ficam todos incomodados quando se fala na redução do seu número, embora - e isto não é conhecido de muita gente - a Constituição o permita. As pessoas cada vez mais se vergam ao peso de impostos, directos e indirectos, com o seu nível de vida muito afectado. Os sacrifícios não parecem ser distribuídos por todos, parece que só alguns - a maioria - têm a obrigação de fazer todos os sacrifícios para que um punhado de indivíduos esteja com a sua vida cada vez melhor. Como o rei David, talvez fosse altura de pedir desculpa às populações e mostrar que o caminho que se está a seguir vai, de facto, ajudar a resolver esta situação. Mas quem segue estes temas mais de perto, verificará que o desnorte é geral e por vezes até duma maneira ridícula - vidé algumas declarações de alguns comissários da UE, - que deveriam mostrar mais bom senso e serenidade. A Grécia afunda-se cada vez mais com o abaixamento do "rating", à dias, e classificado como "lixo", a Espanha reúne no próximo fim-de-semana com os responsáveis do FMI, e não será seguramente para tomar um café. E Portugal... uma economia mais pequena e frágil, que fará? Estes são dilemas que a todos preocupam, para os quais nenhum cidadão comum contribuiu. Há muito a fazer mas parece que ninguém sabe por onde começar. Vai-se tentando, e se não correr bem, arranja-se um outro imposto, ou outra portagem, ou outra coisa qualquer, para ver se assim se resolve a situação, e assim, sucessivamente. Bruxelas já foi avisando que Portugal e Espanha têm que tomar outras medidas, e mais gravosas, para 2011. (Todos sabemos que as que foram anunciadas são insuficientes). É neste emaranhado que me vem à memória a frase de Óscar Wilde: "Deus ao criar o homem sobrestimou a sua capacidade". Se há momentos em que esta frase se ajusta, estamos seguramente a atravessar um desses momentos.
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