Conversas comigo mesmo - LXX
Finalmente a chuva chegou numa invernia anunciada e já fora de tempo que a Primavera já se faz anunciar. Num dia de chuva miúda fazendo o dia aparecer quase como se envolto em nevoeiro estivesse, no "hi-fi" os sons ásperos de Richard Strauβ fazem-se ouvir. Trata-se de "Tod und Verklärung" (Morte e Transfiguração) escrito entre 1888-89. Enquanto escuto vêm-me à memória o tempo de quaresma que vivemos onde se insere precisamente a morte e a transfiguração de Cristo. Neste episódio bíblico o ponto fundamental é aquele onde se lê: "Este é o Meu Filho muito amado escutai-O". Aqui Cristo assume-se como a palavra viva de Deus. Por isso o apelo daquela voz mantém-se actual e urgente: "Escutai-O". A fé cristã nasce e alimenta-se desta escuta. Escutar a Cristo significa querer e procurar conhecer mais profundamente o que Ele é, o que nos diz e ensina, o que nos propõe e espera de nós. Escutá-Lo é sobretudo querer segui-Lo. É uma vontade sincera de assinalar o seu estilo de vida, tendo em conta a sua palavra, os seus gestos e atitudes, as suas preocupações e anseios, os seus sentimentos e os seus passos. Neste segundo domingo da quaresma, dia em que se celebra precisamente a transfiguração, Strauβ continua a fazer-se ouvir, sons arrastados, por vezes, agrestes, por vezes, quase incompreensíveis. E lá fora a chuva miúda continua a cair e a molhar em abundância a terra seca e árida já ávida desta benção. Mas os sons impelem-me para continuar a reflectir. E a questão coloca-se incisiva. Porque O escutaram e O seguiram? Muitos saíram de uma vida egoísta e mesquinha para uma vida aberta e generosa; muitos souberam compreender, perdoar, ajudar construir a paz; muitos souberam lutar pela justiça, pela verdade, pelo bem; muitos souberam ser fiéis à sua vocação, ao seu sim, às suas responsabilidades; muitos tornaram-se uma benção para a sua casa, para o mundo, para o seu próximo. E enquanto os sons de Strauβ se aproximam do seu epílogo, a pergunta fundamental coloca-se: E nós, a quem escutamos e seguimos? O poema sinfónico de Strauβ chega finalmente aos derradeiros sons. Mas as interrogações continuam. As dúvidas permanecem. As incertezas perduram. Incómodas, transversais.
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