Equivocos da democracia portuguesa - 199
"Amanhã, santo amanhã de Portugal, que bons sonos deixas dormir à gente! Que nos importa a nós que as outras nações andem porque aproveitam o dia de hoje, se nós, por ti, dormimos e somos felizes como uns lazzaroni sem cuidados!" - In "O Arco de Sant'Ana" de Almeida Garrett. Voltamos de novo a Garrett como já tínhamos feito na crónica anterior. E tudo isto por um assunto que nos vem ocupando a mente nos últimos dias e que se prende com a privatização - aliás, concessão - da RTP. Já muita tinta correu sobre este caso e muita ainda há-de correr estamos certos. Desde logo o anúncio feito por António Borges um consultor do governo e não o ministro Relvas - o tal que tira cursos com uma rapidez supersónica! - que não teve coragem para o fazer. Aquilo que se pensava ser uma diatribe dum consultor - que já não é a primeira vez que faz tais partidas ao executivo - veio-se ontem a saber que afinal ele o terá feito com a concordância de Relvas. Quem o afimou foi Marcelo Rebelo de Sousa que disse saber isso de fonte segura. Não deixa de ser curioso que Relvas - o tal dos cursos rápidos! - não tivesse a frontalidade para o fazer tendo recorrido a uma "lebre" - para usar um termo muito utilizado no atletismo - e, não deixa de ser ainda mais curioso que António Borges se tenha prestado a isso. Enfim, razões que a própria razão desconhece. E ficamos a saber que quem ficar com a concessão não paga nada e ainda vai ter um chorudo lucro assegurado à partida. Isto é, a delapidação dum bem público que nem ao desbarato será alienado, antes oferecido. E Marcelo alertou e bem, que o PSD e o CDS não tenham a tentação de colocar uma entidade neste processo liderada por um dos seus militantes, o que daria a ideia de que estes partidos controlariam o processo durante vinte e cinco anos independentemente de estarem no governo ou não. Embora, mesmo que se acautele essa questão, nada obsta a que se coloque lá alguém que, mesmo não sendo militante, vai gerir os interesses de tais forças políticas. Como se não bastasse tudo isto, ainda ficamos a saber que a RTP2 vai ser encerrada. E logo se levantaram coros de indignação. Embora não concordemos com o seu encerramento, está claro o processo. Este governo mostrou desde o seu início como olhava enviesadamente para a cultura. O fim do ministério e a criação duma secretaria de Estado são bem prova disso. Agora a RTP2 que, curiosamente, faz mais serviço público que o próprio canal1, salvaguardando a cultura, e a identidade nacionais, estará a caminhar para o seu fim. E isto que surpreendeu muita gente afinal não o deveria ter feito. Esta situação está em linha com o entendimento que o governo tem da cultura em Portugal, o mesmo entendimento que o leva a propor o encerramento da Fundação Paula Rego, que perpetua o nome da mais famosa artísta portuguesa da atualidade a nível nacional e internacional e depois dela própria ter oferecido quadros à Fundação no valor de 1 milhão de euros! Afinal um povo sem cultura é mais dócil, é mais facilmente controlável. Já tínhamos visto isto no passado, num passado que achamos que estaria irradicado do nosso país, mas afinal enganámo-nos. Mas apenas ainda queríamos deixar esta singela questão. Porque será que se fala tanto da alienação, concessão, ou seja lá o que for, que o governo tem reservado para a RTP, precisamente no momento em que esta apresenta lucros? Não será que não andam por aí interesses outros, nacionais ou estrangeiros, a quem foi prometida a empresa? E mais uma vez recorremos ao nosso Garrett: "Estou pensando... e não se arrepiem os meus amigos liberais!... Que pelo jeito que as coisas levam, ... e para se defender do omni-absorvente despotismo dos senhores das burras, dos alcaides-mores dos bancos e de todo este feudalismo agiota, que é fatal lepra da democracia, que a rói e a carcome, e que não vejo forças nem meios - na democracia só - para os combater.". - In "O Arco de Sant'Ana" de Almeida Garrett. Mas este assunto que tem ocupado os "media" nestes dias, tem feito esquecer um outro que é deveras mais importante porque condicionará a nossa vida futura, neste futuro imediato que nos consome. Trata-se do buraco colossal nas contas públicas a que já fizemos referência na crónica anterior. Este é deveras um grave problema que irá condicionar a nossa vida porque ou a "troika" aceita uma renegociação dos prazos ou então a austeridade cairá ainda com mais violência sobre todos nós. Aliás, o PSD já foi ensaindo os passos da dança a preparar este cenário. Parece que o governo, neste como noutros casos, tem medo de enfrentar as populações, onde se incluem muitos que lhes confiaram os seus votos. Pela maneira como as coisas se apresentam, não só este ano o déficit não atingirá o valor de 4,3% assumido no "memorandum", nem no próximo os 3,5%. E como dizíamos atrás, ou o governo negoceia novos prazos - contrariando a posição do PM que disse que nunca o faria -, ou se continua com a política do "custe o que custar" o país sairá ainda mais esmagado do que já está. E chegados aqui, há que lembrar que a política de mais austeridade não cria emprego, não ajuda as empresas, não potencia o crescimento económico. E assim sendo, as receitas do Estado serão cada vez mais curtas e terão que ser compensadas pelo lado da despesa. E aqui é que o problema se coloca. Como temos assistido, o Estado tem sido incapaz de cortar na despesa duma forma efetiva e consistente, logo o recurso a mais austeridade - normalmente por aumento da carga fiscal - será a solução. Uma solução já tão nossa conhecida e que tem sido transversal a vários governos. A espiral recessiva continuará e não veremos tão cedo a luz ao fundo do túnel, mas apenas mais e mais túnel. Mas para isso temos os nossos políticos, oradores brilhantes quase todos, para embalar na sua verborreia os portugueses. Recorremos de novo a Garrett: "O efeito narcótico desta eloquência admirável começava a manifestar-se na assembleia dos paços do concelho do Porto pelo mesmo modo que, tantas vezes depois, vimos e sentimos nos paços de S. Bento em Lisboa. Os vereadores cabeceavam todos; Vasco sentia um pesadelo mortal que o oprimia e adormentava como num mau sonho de febre; os mais exaltados chefes da multidão bocejavam atrozmente. E ali se acabaria toda a disputa, como acabou aquela briga dos borrachos, porque em vez de brigar, adormeceram..." - In "O Arco de Santa'Ana" de Almeida Garrett. Esperamos que agora, a menos de vinte e quatro horas de se iniciar a quinta avaliação da "troika" não adormeçamos, nem nos deixemos adormecer por quaisquer cantos de sereia. Se nada for alterado, a recessão continuará num ciclo de empobrecimento que vemos diariamente noutros países como a Grécia. Os ajustamentos que a "troika" impõe nos seus planos de resgate são praticamente inexequíveis. Estes já devem ter percebido isso. O FMI já foi dando sinais disso mesmo, quanto aos outros parceiros ainda nada vimos. Achamos que a "troika" precisa urgentemente dum caso de sucesso, mas com os planos que definem, sempre iguais independentemente das particularidades dos países, não o conseguirão tão cedo e, infelizmente, também não seremos nós a dar esse exemplo. Ou há ajustamento ou será o caos. Pensamos que hoje já ninguém tem dúvidas, mesmo para mentes ultraliberais como aquelas que nos governam. E aqui, vem-nos à memória a frase de Boileau: "Rien n'est beau que le vrai". Talvez o exemplo Islandês seja a solução, mas não assumida por ninguém. É que quando nos dizem que não existe outro caminho não nos estão a dizer a verdade. O caso da Islândia é disso exemplo, por isso se fala tão pouco dele até porque é um caso incómodo. Faz-nos lembrar o sheakespereano Hamlet: "There are more things in heaven and earth, Horatio, Than are dreamt of in your phylosophy". É altura de despertarmos para a realidade ou de naufragarmos na inanição...
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