Equivocos da democracia portuguesa - 293
"A fome não é um dever constitucional". Foi com esta frase que o Prof. Adriano Moreira iniciou há dias uma entrevista na SIC Notícias. (Paulo Portas chamou-lhe sábio, o que é pena é que não tenha aprendido com ele coisa nenhuma!) Frase desassombrada que traduz bem aquilo que se está a passar entre nós. Depois de cortes e mais cortes, depois dum OE que anuncia ainda mais austeridade, numa altura em que se coloca a questão da inconstitucionalidade de algumas normas nele contidas, para além de tudo isto, cada vez mais portugueses passam fome. E não pensem que é uma figura de retórica. Não. Passam realmente fome, na hora de sentar à mesa, muitos nada têm para colocar sobre ela. Esta é a realidade portuguesa, dum país destroçado por uma vaga ultraliberal que nos destruiu, que nos destrói, enquanto permanecerem no poder. E esta ideia já passou fronteiras. Na sexta-feira passada, Mark Blyth afirmava que "os cortes em Portugal são inúteis". Para quem não sabe quem é Mark Blyth é economista e é o autor de "Austeridade - A história duma ideia perigosa", livro que está a fazer foror nos fóruns de economia. Daí o vermos com naturalidade o adensar da agitação social, para já ainda enquadrada pelos partidos ou pelas organizações sindicais, porque o mais grave será quando estas manifestações forem espontâneas e não forem enquadradas. Aí sim, temos que ficar realmente preocupados, mas temos que ter a noção de que estamos cada vez mais perto dessa situação. Apesar da baixa sindicalização que existe entre nós, - que a crise não potenciou -, mesmo assim, vemos como as centrais sindicais conseguem mobilizar tanta gente, sobretudo a CGTP, que é a maior e a mais significativa. E o motivo é simples. Os portugueses já não aguentam mais, não podem com tantos impostos, restrições, ataques à saúde, à educação, à sua vida do dia a dia, enfim, não aceitam a crescente depauperização de que estão a ser alvo. Empobrecimento forçado, ignóbil, vindo dum governo que, desde o início tinha como lema: "O país tem que empobrecer" (Passos Coelho dixit). Só que o primeiro-ministro e o seu executivo não têm estratégia para o país. E esta é que é a grande questão. Mas se o governo não a tem, a oposição também não. O nosso drama é assistir a uma fragmentação da oposição pelo simples facto de que não existe uma proposta global, aglutinadora, para o futuro coletivo de Portugal. E isto faz com que as populações se sintam pouco motivadas. Porque sabem que entre o que está e o que vem a diferença poderá não ser substancial. E quando vemos tanta gente nas manifestações, é porque o limite já chegou, as pessoas sentem-se esmagadas, e apenas a revolta, o sentido de injustiça as faz descer à rua. E voltando ainda a Mark Blyth o escocês, professor de Economia Política no departamento de Ciência Política da Universidade de Brown, em Providence, Estados Unidos refere que o facto de a austeridade “pura e simplesmente não funcionar” é a primeira razão pela qual a austeridade “é uma ideia perigosa”. E tal acontece porque a austeridade nunca foi estudada antes como acontece com outros fenómenos económicos. Assim, diariamente estamos a viver num imenso laboratório onde as medidas estão a ser testadas e corrigidas, uma após outra, porque não estão a dar o resultado pretendido. Portugal, como todos os países intervencionados, estão a ser cobaias, onde as medidas e os seus impactos serão estudados para depois virem a ser aplicadas numa versão mais definitiva nos países de maior dimensão que também estão a ser afetados por ela. A economia hoje é global e ninguém fica de fora do que acontece aqui ou ali. Enquanto o "case study" português está a decorrer as populações estão a empobrecer, o país está a ser vendido a retalho a preço de saldo, e depois de tudo isto, que restará? Quanto tempo tem que passar para se recuperar? Como dizia Manuela Ferreira Leite há uns meses atrás: "Que me interessa que se resolva a crise se depois não existe mais nada"? Ou, como diria Keynes: "No médio e longo prazo estaremos todos mortos". E não era da morte física que ele falava... E não pensem que a "troika", só por si, é culpada de tudo. Enquanto escrevíamos tudo isto, veio-nos à memória um grande livro dum grande escritor português. O livro é "Os Maias" e o escritor é o grande Eça de Queiroz. Esse livro que levou vários anos a ser composto, foi publicado numa época em que Portugal estava a passar - mais uma vez - por dificuldades que o levaria a pedir um resgate externo a um banco inglês que demorou 99 anos a ser liquidado (!), sendo a última prestação paga em 2001! Daí talvez a sua atualidade, e nessa altura ainda não havia "troika"!...
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