Equivocos da democracia portuguesa - 306
"Basta, senhor, porque roubo uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza..." - Padre António Vieira (1608-1697). Como se ajustam estas palavras vindas do fundo dos séculos aos dias de ira que vivemos. Que dizer dos que roubam direitos adquiridos sobretudo aos mais idosos e por isso mais indefesos? São os cortes nas pensões, são os cortes nas reformas, no Serviço Nacional de Saúde, na escola pública. Que dizer de tudo isto? E os subsídios que são cortados aos mais necessitados, aos desempregados cujo único crime é não conseguirem emprego. Que dizer dos muitos que viram as costas ao seu país por nele não encontrarem futuro e vão fazer a sua vida no estrangeiros donde nunca mais voltam? Que dizer dos jovens que partem - a geração mais evoluída que alguma vez tivemos fruto doutros governos com mais visão estratégica - formada com os dinheiros públicos, logo, de todos nós e que vão enriquecer com o seu saber outras pátrias que não a sua? E ainda por cima, no 1º de Dezembro, - dia da Restauração que a ausência do feriado não faz esquecer -, o primeiro-ministro de Portugal vir afirmar que lamenta a saída da geração mais qualificada do país! Não foi esse primeiro-ministro que afirmou que tínhamos que empobrecer? Será que ainda se lembram? Então porquê esta dissimulação, esta hipocrisia que toca a raia do insulto? Mais do que pelo programa de ajustamento, mas sobretudo, em nome dum programa ideológico, este governo, este primeiro-ministro apenas nos sabe falar em austeridade. Queríamos aqui deixar uma frase de Mark Blyth que esteve entre nós a semana passada: "As elites europeias veem as coisas assim e daí a austeridade; mas isso não significa que a austeridade funcione ou que não haja alternativa. A Europa está neste momento a fazer uma gigantesca experiência de austeridade e os resultados, como dissemos, são previsivelmente horríveis. Se fazer repetidamente a mesma coisa continua a ser a definição de loucura, então talvez a loucura vá acabar mal, muito antes da austeridade alguma vez compensar, coisa que não se consegue nas presentes circunstâncias: Portanto, mais uma vez, porquê continuar a aplica-la? O TINA (There Is No Alternative) é insuficiente para explicar a continuação da atração pela austeridade perante provas em contrário. Como veremos em conclusão, há sempre alternativas". (Mark Blyth, in Austeridade, pág. 150). A "mão invisível" de Adam Smith, dentro do mais puro liberalismo, é a senda que este executivo está a seguir. E aqui vem-nos à memória as palavras desse grande pensador francês que foi Rousseau: "A primeira pessoa que tendo delimitado um lote de terreno, meteu na cabeça dizer 'isto é meu' e achou que as pessoas eram suficientemente simples para acreditarem nele, foi a verdadeira fundadora da sociedade civil" (Jean-Jacques Rousseau, Basic Political Writing, pág 60). Este sentido de posse, este sentido de que as pessoas não contam, o social não passa duma "blague", as aspirações individuais, logo egoístas, é que merecem ser relevadas, dão a coloração dum liberalismo desenfreado sem valores, sem ética, onde a lei da selva impera - leia-se os mercados - e onde as pessoas são incentivadas a uma luta sem quartel onde apenas os melhores - ou mais audazes, ou com menos escrúpulos - vencem, caminhando por cima de outros. A este neoliberalismo que avassala a Europa - vejam no que se está a transformar o projeto europeu, se é que ainda podemos falar em projeto - e a que Portugal não escapa, onde as pessoas são objeto duma qualquer "seleção natural" ao jeito de Malthus. O Papa Francisco na sua primeira exortação apostólica "Evangelii Gaudium" (A Alegria do Evangelho), afirma: "Como pode ser que não seja assunto para notícia quando uma pessoa sem teto morre por abandono às intempéries, mas é notícia quando o mercado de ações perde 2 pontos?". E acrescenta: "Enquanto os problemas dos pobres não forem radicalmente resolvidos por meio da rejeição da autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira, e pelo ataque às causas estruturais da desigualdade, nenhuma solução será encontrada para os problemas do mundo ou, nessa matéria, para quaisquer problemas". Até a Igreja já não pode ficar indiferente a tanto desaforo. Se com a austeridade se quebra a procura, e se esta não existe, logo as empresas não produzem o que deveriam, ou se o fizerem será para aumentar os seus stocks, e assim sendo, o emprego não é criado. É duma simplicidade meridiana este raciocínio, e para aqueles que ainda possam ter algumas dúvidas, aqui fica um pensamento de J. M. Keynes citado por Mark Blyth: "Como disse Keynes: 'O consumo - para repetir o óbvio - é o único fim da atividade económica' (General Theory, 104). O consumo provoca o investimento, e não o contrário. A confiança é um efeito do crescimento, e não uma causa". (Mark Blyth, in Austeridade, pág. 192). Mas por cá, e não só entre nós, há quem pense exatamente o oposto. O que significa que ou são loucos ou, - e é este o caso -, trata-se duma opção ideológica que a coberto do memorando de entendimento está a ser executada. Dizia Einstein que "fazer repetidamente a mesma coisa para obter resultados diferentes é uma loucura", não sabemos se estava a pensar em Portugal, mas bem que poderia ter sido. Quando o Estado é um verdadeiro fator de perturbação, quando é uma verdadeira fábrica de desempregados - vejam o último caso escandaloso dos Estaleiros de Viana do Castelo -, quando é uma fábrica de imigrantes - desde logo, os mais jovens que são os mais qualificados -, como se pode continuar a acreditar em gente desta cujo bem da Nação é apenas uma figura de retórica? E chegados aqui, de novo nos assume ao pensamento as palavras do Papa Francisco: "Do mesmo modo como o mandamento ‘Não matarás' estabelece um claro limite para salvaguardar o valor da vida humana, hoje nós também temos de dizer "Não deves" para uma economia de exclusão e desigualdade. Tal tipo de economia mata". Não será já mais do que tempo de dizer basta? Em política há sempre uma saída alternativa por mais que alguns adeptos da desgraça nos pretendam fazer crer o contrário em nome dum qualquer mercado que dá cobertura a outras intensões bem menos prosaicas.
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