Turma Formadores Certform 66

Friday, December 27, 2013

"Defensores da austeridade sofrem de amnésia" - Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart

Já há algum tempo trouxe a este espaço o magnífico livro de Mark Blyth, "Austeridade - A História de uma Ideia Perigosa", que recomendo vivamente a todos aqueles que se interessam por estas questões. Na mesma linha publico aqui, na íntegra, um artigo publicado no Expresso on-line de ontem sobre o mesmo tema. Porque vem na linha de Mark Blyth e também pela sua pertinência e atualidade aqui o transcrevo na sua totalidade.
 
"Em nenhum lado o estado de negação é mais agudo do que no caso da amnésia coletiva sobre as experiências anteriores de desalavancagem nas economias desenvolvidas - especialmente, mas não exclusivamente, antes da 2ª Guerra Mundial - que envolveram uma variedade de reestruturações de dívida soberana e privada, bancarrotas, conversões de dívida e repressão financeira", dizem Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart, dois académicos especialistas em história das crises, num artigo publicado, esta semana, nos Working Papers do Fundo Monetário Internacional (FMI).
"A fase atual do ciclo de negação é marcada por uma abordagem oficial baseada na suposição de que o crescimento normal pode ser restaurado na base de uma mistura de austeridade, resignação e crescimento", escrevem os dois académicos em "Financial and Sovereign Debt Crises - Some Lessons Learned and Those Forgotten". Rogoff e Reinhart publicaram, em 2009, com um título irónico "Desta vez é diferente" (tradução pela Actual/Almedina, 2013), uma volumosa obra sobre "Oito Séculos de Loucura Financeira".
Os dois académicos foram criticados este ano por um outro trabalho académico, publicado em 2010, em que pretendiam que se verificaria historicamente um limiar na dívida pública (90% do PIB) a partir do qual a economia cairia em recessão, uma conclusão cujos fundamentos empíricos se relevaram errados. Esse pretenso limiar foi uma das justificações para a austeridade defendida na Europa nomeadamente pelo Eurogrupo e pelo Banco Central Europeu a partir dessa altura.
Em estado de negação
Rogoff e Reinhart sublinham, neste novo artigo, que o estado de negação dos governantes e de outras autoridades das economias desenvolvidas leva-os a defender que "não é preciso recorrer à caixa de ferramentas usada pelas economias emergentes, que incluiu reestruturações de dívida, inflação mais elevada, controlo de capitais e repressão financeira significativa" em décadas recentes, "esquecendo" inclusive que esses instrumentos foram "parte integrante da resolução de situações de sobre-endividamento" nas próprias economias desenvolvidas em diversas alturas no século XX.
Baseados na história das crises desde 1900, os dois autores apontam para cinco elementos de gestão das crises de sobre-endividamento que foram usados em separado ou em alguma combinação: crescimento económico; austeridade; reestruturação de dívida ou bancarrota; inflação inesperada; e repressão financeira com alguma dose de inflação. O crescimento económico como cura para o endividamento foi "relativamente raro". As restantes ferramentas implicam, sem dúvida, "uma dose de impopularidade ou de dificuldade prática", referem os autores.
Mas o que é grave é que os atuais governantes nos países desenvolvidos tendem a "esquecer" as reestruturações de dívida e a repressão financeira conjugada com alguma dose de inflação, argumentando que isso são "coisas" para as economias emergentes. Na verdade, as reestruturações de dívida foram frequentes nas economias desenvolvidas no período entre as duas Guerras Mundiais e a repressão financeira com inflação foi usada extensivamente após a 2ª Guerra Mundial.
Perdões de dívida
Rogoff e Reinhart recordam os perdões de dívida concedidos pelos EUA em 1934 às economias desenvolvidas. A França e a Inglaterra beneficiaram de reduções de dívida na ordem de 22 a 24% do PIB e a Itália ficou perto dos 20%. No caso das dívidas de outras economias ao Reino Unido, na mesma altura, nunca foram pagas ou entraram em situação de bancarrota. Estas operações "desempenharam um papel substantivo na redução do sobre-endividamento derivado quer da 1ª Guerra Mundial como da Grande Depressão".
Apesar do discurso "moral" atual contra as mexidas na dívida soberana na Europa, dois acontecimentos recentes ilustram o seu papel: a reestruturação da dívida grega na mão de credores privados - o que foi designado pelo acrónimo em inglês PSI, para envolvimento do sector privado - concluída em abril de 2012, que ajudou a afastar o medo de saídas de membros do euro e a esfriar o sobreaquecimento no mercado secundário da dívida dos periféricos; e a operação de troca na Irlanda das notas promissórias no valor de 25 mil milhões de euros com uma maturidade de 10 anos por dívida de muito longo prazo com uma maturidade média de 34,5 anos e com juros mais baixos, o que permitiu ao governo de Dublin aligeirar o fardo anual da dívida no pós-troika.
"Dada a magnitude da dívida atual e da probabilidade de um período sustentável de crescimento económico médio abaixo do par, é duvidoso que a austeridade orçamental seja suficiente, mesmo que combinada com repressão financeira. Pelo contrário, a dimensão dos problemas sugere que reestruturações [de dívida] serão necessárias, em particular para a periferia da Europa, muito para além do que tem sido discutido em público, até ao momento", concluem os autores.
Repressão financeira
Quanto à repressão financeira depois da 2ª Guerra Mundial, os dois académicos dizem que atuou, por exemplo, através de taxas de juro reais negativas sobretudo nos EUA e no Reino Unido ou por via da inflação, como nos casos de Itália e Austrália.
O conceito de repressão financeira foi desenvolvido pelos académicos John Gurley e E. Shaw nos anos 1960 e por Ronald McKinnon duas décadas depois. Pretende caracterizar as políticas governamentais tendentes a reduzir a remuneração obtida por aforradores e canalizar recursos para os emissores de dívida (como os próprios Estados sobre-endividados); é uma forma de redistribuição de capital. Incluem, os empréstimos diretos ao Estado por parte de entidades domésticas (como os fundos de pensões), tetos explícitos ou implícitos nas taxas de juro, regulamentação de movimentos de capitais e, em geral, uma ligação estreita entre os governos e os bancos locais.
Duas propostas recentes podem ilustrar um mecanismo típico de repressão financeira via impostos: a imposição de um imposto extraordinário progressivo sobre os depósitos bancários que foi rejeitado pelo parlamento cipriota, no âmbito do resgate daquele país pela troika em março; e a hipótese colocada, no "Fiscal Monitor" de outubro, por técnicos do FMI de um imposto extraordinário (de 10%) sobre a riqueza das famílias. Este tipo de medidas necessita, em geral, de controlo de capitais para poder ter eficácia.
Segundo Rogoff e Reinhart, um contexto de políticas desse tipo permitiu às economias desenvolvidas manter um rácio médio da dívida pública em relação ao PIB inferior a 30% entre 1970 e 1980, contrastando com níveis acima de 80% logo após a 2ª Guerra Mundial e em 2010.
Depois deste artigo, como depois de se ter lido o livro de Mark Blyth, nada fica como dantes. Parece que cada vez mais pessoas tendem a mostram o enorme embuste que está a ser criado junto dos países periféricos europeus, sob resgate, e de economias mais frágeis. Como já aqui defendi por diversas vezes, quando se diz que não há alternativa, isso personifica uma enorme mentira, basta para isso consultar os manuais do Keynesianismo que qualquer estudante destas matérias conhece. Depois de ouvirmos pessoas com o peso que estas têm na cena internacional e do prestígio que gozam junto dos seus pares, é fácil concluir que para além da austeridade existe algo, que esta não é o fim em si, que ela esconde um projeto político e económico - ultraliberalismo - que nos estão a esconder. É tempo de pensarmos que nem tudo se resume a um punhado de cortes a esmo, que a situação pode evoluir favoravelmente com políticas menos agressivas para as economias nacionais e para os seus cidadãos. Um artigo importante que nos deve motivar (se possível, ainda mais) a pensar sobre estas questões que nos vêm afligindo nos últimos anos. Um bom tema de análise e reflexão para nos levar ao passo seguinte, o de abrir horizontes para outras estratégias, que as há. 

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