Conversas comigo mesmo - IV
Um convite que não podemos recusar: viver para os outros. A morte não é apenas um problema, é um momento-chave da vida, que todos somos convidados a viver. A morte é apenas a penúltima palavra sobre nós, pois coloca um ponto final na nossa vida na Terra, tornando assim essa vida completa. Pela nossa morte "encerramos" o processo de construção da nossa própria identidade. Termina a vida em liberdade, que nos permite ser o que seremos. Interrompe-se a relação com os outros, mas não termina, por completo e para sempre, a possibilidade dessa relação. Com a morte abre-se uma outra dimensão da vida, em que o que somos e a nossa relação com os outros atinge a dimensão do infinito amor de Deus. A última palavra sobre nós, o núcleo da nossa esperança, é a ressurreição. A ressurreição é a transfiguração de nós mesmos numa outra dimensão de nós, onde seremos plenamente nós mesmos, por pura dádiva de Deus. A esta dimensão a tradição cristã chamou "céu". Não a podemos realizar nós mesmos, podemos, isso sim, prepararmo-nos para a acolher ou recusar. Na dimensão da vida de Deus, seremos dados à vida - uma vida diferente da que conhecemos biologicamente - para darmos a vida, tal como a demos, no nosso caminho terreno. Se aceitamos o desafio de viver eternamente para os outros, teremos vida eterna, numa doacção que não conhecerá nem limites nem fim. Por isso, o desejo que nos pode animar eternamente é o desejo de vida eterna do outro, não tanto da nossa. O desejo da vida para o outro, sobretudo do mais necessitado, pobre e excluído, é caminho que nos prepara para a vida eterna. Não vivemos, por isso, para "conquistar um lugar no céu", mas para que os outros tenham esse "lugar". E só se houver, ainda que pequenino, esse desejo de vida eterna para o outro, é que Deus poderá completar o nosso mísero amor com a plenitude do seu. Jesus Cristo inaugurou esta nova dimensão da vida, ressuscitando de entre os mortos, porque viveu a vida dando vida numa doação total, até à morte numa cruz. A morte, por Jesus, é ela mesma uma dádiva livre e gratuita da vida. Essa entrega é o fundamento da esperança de que seremos dados à vida, para além da morte, nessa nova dimensão, a dimensão plena do amor de Deus. Podemos assim compreender que uma vida dada livremente pelo outro, pelos rostos que nos interpelam, quando acontece a morte, essa mesma vida faz com que a morte não possa mais roubar-nos a vida. Esta adquire eternidade. Foi uma vida dada. Deus "soma luz à luz". A morte não é, definitivamente, a última palavra sobre nós. À dor da ausência sobrepõe-se necessariamente a força da esperança. Uma esperança enraizada no nosso mais profundo ser que nos impele a permanecer no caminho. O ser humano é, por natureza, um ser de esperança que não abdica diante da adversidade. A esperança fundamenta-se em alicerces diferentes mas nem todos iguais ou válidos.
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