Conversas comigo mesmo - II
Um silêncio que nos chama para mais perto da vida. Em torno dos que nos morrem, há um silêncio que nos chama para mais perto da vida. Dá-nos a ouvir coisas que não sabíamos ou tínhamos esquecido. A memória guarda o que foi bom daqueles que nos morrem, o que deles foi dom para nós e para os outros. Contemplando-os, descobrimos mais lúcida e aumentada a nossa capacidade de compreensão e de perdão. Apenas os mil gestos da ternura importam afinal. E dizemos, baixinho, muito gratos: "Bem-hajas!" Sem que eles o queiram, o desarmado silêncio dos que nos morrem chama-nos a depor no santuário íntimo da consciência. É assim este mistério maior do que a morte: a quem ama parece sempre pouco o muito que dá. Por isso, mais do que de impotência, a morte fala-nos de imperfeição, de incapacidade, de fragilidade. Os que nos morrem ensinam-nos, no mais fundo de nós, a compaixão. A morte não retira seriedade à vida. Ao contrário: - ela relativiza as grandes coisas, o poder, o dinheiro ou os grandes êxitos proclamados ao som de trombetas; - ela desperta-nos para essas pequeninas e invisíveis forças do amor humano que actuam de pessoa para pessoa, que rompem pelas fendas do mundo como finíssimas raízes ou minúsculas gotas de água e fazem em mil pedaços os mais pesados monumentos do orgulho; - ela responsabiliza-nos por cada palavra e gesto, por cada uma das nossas escolhas e prioridades. A morte é sempre uma pergunta sobre o amor que fomos capazes de gerar. Os que nos morrem despertam-nos para as dores do mundo, obrigam-nos a pensar a morte para mais fundo pensarmos a vida, como duas partes de um todo. E, é curioso, de tal forma caminham entrelaçadas, que chegamos a duvidar da fronteira entre o que é a morte e o que é a vida. Tantas vezes, na vida vivida com os que nos morrem, nos impusemos renúncias e mortes ao egoísmo e tantas vezes isso gerou vida. Como se o amor fosse uma lança atirada ao coração dos rituais de auto-realização e das fórmulas fáceis, como se todo o amor tivesse uma cruz onde se morre e ressuscita para algo de maior, capaz de desafiar os medos e o sem-sentido. Os que nos morrem ensinam-nos a segurar as rédeas da vida, mas ensinam-nos também a abrir as mãos. Para acolher e deixar partir os que nunca foram propriedade nossa, mas tão só empréstimo do singular milagre da vida que vivemos juntos. A dor pela perda dos que nos morrem inaugura às vezes estranhos caminhos dentro de nós. Feliz de quem neles serenamente se descobre como o ramo que os continua. A morte é fonte de fecundidade e de esperança. É sempre do amor e da vida que falamos quando lidamos com a morte.
0 Comments:
Post a Comment
<< Home