Turma Formadores Certform 66

Thursday, December 02, 2010

Conversas comigo mesmo - III


De que nos vale escondermos a morte? Houve um tempo em que a morte nos era próxima, fazia parte da sociedade e da família e, embora não fosse uma boa amiga, não lhe desviávamos os olhos à passagem. Harmonizava-nos com os ritmos da natureza e no horizonte tudo parecia presença dessa imensa pequena palavra: Deus. Era-nos, então, mais fácil encontrar a paz na ideia de morrer. Víamo-la como natural, embora tão misteriosa quanto a ideia de nascer. Hoje, escondemos a morte; só nos ecrãs é que a expomos sem pudor. Mas este excesso contínuo de imagem de morte provoca exactamente o efeito de desgaste e a indiferença em relação à vida. Convoca a nossa indiferença face à injustiça e à guerra, à pobreza e à aflição de tantos seres humanos, que nos rodeiam. Diariamente e, aos poucos, vemos a morte à distância, com a infantil ilusão de quem vê imagens de ficção ou observa um assunto que apenas a outros diz respeito. No mais, impomos-lhe o silêncio, escondemo-la, ignoramo-la, afastamo-la, tiramo-la de casa, remetemo-la para os hospitais como se fosse contagiosa ou simplesmente nos obrigasse a aceitá-la - em data próxima ou distante - como o mais radical e decisivo dos encontros. Por isso estamos sempre a surpreender-nos com aquilo de que, no fundo, estávamos à espera. Num instante, anunciada ou de surpresa trágica, ela aí está naqueles que nos morrem. E, anunciada ou de surpresa, chegará a nossa vez. Será privado e íntimo esse encontro. Estar "às portas da morte" significa aproximar-me do "a-Deus". Este "a" significa abertura, acolhimento, aproximação do amor de Deus. Significa também a saudação de despedida àquele que parte. Sendo possível, será bom saber que temos os nossos por perto, aqueles com quem partilhámos os dias, a dizer-nos "estou contigo", "isto não acaba aqui", a acenar, com saudade, sinalizando um imenso amor no cais da nossa partida. a morte é sempre vivida por quem permanece vivo, como experiência misteriosa que abre as portas do infinito, porque quem parte, esse rosto agora transformado em máscara, por força de uma ausência que dói, de uma partida sem retorno, abre-nos ao mistério e à transcendência. Esse é o facto mais importante que decorre da nossa relação com a morte: pensar a minha vida como vida para o outro. Carregar o luto é carregar a "santidade do outro" ausente e abrir ainda mais as portas ao outro presente, o único caminho verdadeiramente humano.

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