Conversas comigo mesmo - XXX
Por vezes recorro às parábolas bíblicas para ilustrar certas ideias e para que tenhamos a noção de que a nossa "praxis" nem sempre é a mais adequada, quer no relacionamento com o nosso semelhante, com os animais, com a natureza, enfim, com o nosso planeta que é a nossa casa comum, já para não falar no lado religioso, mesmo quando nos afirmamos cristãos sem termos a noção do que isso implica. Hoje também não será excepção. Trago-vos a parábola dos trabalhadores da vinha que nos recorda a do filho pródigo. Diz assim, "... mas o proprietário respondeu a um deles: 'Amigo, em nada te prejudico. Não foi um denário que ajustaste comigo? Leva o que é teu e segue o teu caminho. Eu quero dar a este último tanto como a ti. Não me será permitido fazer o que quero do que é meu? Ou serão maus os teus olhos porque eu sou bom?' Assim, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos." Na parábola do filho pródigo, o filho mais velho julga-se com direitos especiais por ter cumprido sempre as ordens do pai, ao contrário do seu irmão mais novo. Nesta dos trabalhadores da vinha, que hoje vos proponho, os contratados da primeira hora reivindicam salários diferentes em relação aos que vieram mais tarde. Nos dois casos, a resposta confirma as palavras de Isaías, quando nos garante que os pensamentos e os caminhos de Deus não são os nossos. E a sua justiça também não, pois o amor a tempera e lhe dá outras dimensões. Jesus - esse Homem solitário - põe-nos, assim, mais uma vez de sobreaviso quanto à perigosa e mortífera "religião dos méritos". Na verdade, nenhuma atitude de fé se pode conceber como uma aquisição de direitos diante de Deus. Deus não paga "à hora". A sua salavação é sempre gratuíta, fruto da sua graça. Por isso, aquele proprietário que não cessa de procurar e contratar trabalhadores para a sua vinha, seja qual for o momento da jornada, e a todos pagando por igual, exprime bem a generosidade de Deus para quem se decide acolher o seu apelo e ir ao seu encontro. Deixa ainda bem claro que nenhum ser humano se deve considerar perdido ou sem solução, pois a vontade constante de Deus é abrir diante de cada homem, seja qual for a sua idade ou condição, caminhos que o recuperem e salvem. Eis a mensagem certa e oportuna para o novo recomeço a que, sempre, somos chamados. Eis um bom tema para reflexão, porque na azáfama do dia-a-dia, na busca de soluções para uma vida cada vez mais cheia de dificuldades, esquecemo-nos, por vezes, se fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para "dar a volta". Seja à nossa vida, seja no relacionamento com tudo o que nos rodeia. Se vivemos uma vida de esperança e de busca dessa mesma esperança ou se, pelo contrário, baixamos os braços sentindo que o Universo conspira contra nós, que nos vamos afundando na pequena inveja do outro só porque ele tem - muitas vezes aparentemente - uma vida melhor do que nós. Pequenas coisas que nos fazem esquecer o essencial, a noção de caridade face àquele que está ao nosso lado e que, por vezes, nem vê-mos, do animal que está a sofrer e que nem sempre ajudamos ou até ignoramos, da natureza que espezinhamos diariamente nem sempre com a noção disso mesmo, do planeta que destruímos - no nosso aparente progresso - sem ter-mos consciência que estamos a destruir a nossa casa comum e que, quando isso acontecer, colocamos em causa tudo até a humanidade. É bom para pensarmos, é bom para reflectirmos. Como já por vezes afirmei, a Bíblia é um excelente livro que vai muito para além do conceito religioso - embora esse seja o essencial e assim a vê-mos - mas pode ser lido como um livro de filosofia, de história, até de economia, se tivermos latitude intelectual para isso. Abramos o espírito a tudo aquilo que nos cerca porque, por vezes, as grandes atitudes estão nos pequenos gestos.
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