Turma Formadores Certform 66

Friday, February 07, 2014

Défices crónicos, contas equilibradas?

Respiguei este artigo do jornal Economia e Finanças, que dado o seu interesse, publico aqui na íntegra. Tratam-se em boa verdade de dois artigos que aqui compilei num só para não quebrar o ritmo da leitura.

"Por vezes ouve-se na praça pública que um país com um défice crónico durante anos, décadas ou mesmo séculos está condenado a estar permanentemente em desequilíbrio e a entrar em processo de falência. Pegamos nessa “verdade absoluta” para a desmontarmos e explicarmos de caminho o que é verdadeiramente relevante no processo de gestão do deve e haver de um estado soberano. Intuitivamente parece impossível que um país que tenha défices orçamentais crónicos mais cedo ou mais tarde não entre em colapso financeiro, afinal todos os anos o défice aumenta a dívida. Mas o que é relevante, é o valor que se deve, ou a capacidade de pagar os juros e o capital? Geralmente quando falamos em défice público, ouvimos falar de uma percentagem e não tanto de um valor monetário. A percentagem de que se fala é o peso do défice na riqueza que se gera durante um ano. O mesmo sucede com a dívida; a dívida hoje anda pelos 130% da riqueza gerada em Portugal num dado ano, ou seja, é 130% do PIB. E é aqui que temos o segredo para que a afirmação de que défices crónicos geram falência possa, em certos casos, estar errada. Imagine que o défice aumenta em euros todos os anos (todos os anos nos endividamos) mas imagine que a riqueza produzida no país por ano, aumenta mais depressa. Nesse caso, o peso do défice no PIB e da dívida no PIB diminui, ano após ano. Ou seja, ano após ano o serviço da dívida será cada vez mais fácil de suportar porque a nossa riqueza (o bolo de onde vamos buscar os recursos para pagar o que devemos) está a crescer mais depressa do que a nossa dívida. Simples, não? As contas só se complicam verdadeiramente se o défice e a dívida aumentarem de peso no PIB ou se por alguma razão a máquina fiscal (a que vai ao PIB cobrar impostos para pagar as dívidas) começar a funcionar pior. Mas esqueçamo-nos nesta prosa da eficácia da máquina fiscal e detenhamo-nos no resto. A complicação das contas pode acontecer por duas vias: por um lado o défice pode aumentar mais depressa do que cresce a riqueza gerada (como já vimos), por outro lado, mesmo que o défice abrande, se a riqueza anual se contrair (em vez de crescer), o peso do défice e da dívida tende a ser cada vez maior  e mais difícil de suportar. Num enquadramento de história económica recente, orientado para o caso português e europeu, notamos que na crise recente, combinaram-se vários efeitos negativos de consequências dramáticas no défice e na dívida. Um deles foi o fim do acesso ao mercado da dívida pública por parte de alguns países. Algo que foi fortemente impulsionado pelas declarações de Angela Merkel e Nicolas Sarkozy em 2010 quando afirmaram publicamente que, na Zona Euro, cada um era responsável pela sua dívida: não havia solidariedade dentro de uma zona monetária com moeda comum (ao contrário do que era intuído até ali pelos mercados). Na sequência de tais declarações, e no meio de uma crise onde há dois anos se instalara um forte sentimento de desconfiança e se acumularam orientações erráticas no combate à crise por via da política económica comunitária, os famosos 'ratings' degradaram-se rapidamente entre os países com maior fragilidade económica e/ou com mais problemas conjunturais (bolhas imobiliárias, crise de insolvência e/ou liquidez bancária, etc). Em larga medida, iniciou-se um processo de bola de neve, agravado por várias outras decisões internas à Zona Euro que conduziram à assunção pelo Estado de dívidas privadas e a uma política única de austeridade em todo o espaço europeu. Em pouco tempo, as falências soberanas tornaram-se inevitáveis e a disponibilidade de credores para comprar o défice que se gerava diminuiu. Foi como se a Zona Euro tivesse recuado ao dia anterior à sua formação em termos de avaliação de risco. Ora, voltando à nossa questão, cada euro de dívida nova e antiga (quando chegava ao momento de a renegociar) passou a ser muito mais caro de vender a credores ou mesmo impossível de colocar no mercado. Por outro lado, a tentativa de reduzir rapidamente o défice por via da austeridade (reduzindo as necessidades de financiamento da máquina do Estado, os apoios sociais e as pensões) revelou-se e continua a revelar-se inglória sendo ela própria responsável por uma parte significativa do reforço do peso da dívida no PIB à conta dos efeitos de destruição da capacidade de gerar riqueza. Nestes últimos anos, o défice em valor monetário cai ligeiramente mas cai mais devagar do que tem caído o PIB e a perspetiva de se obter financiamento direto nos mercados a um preço suportável continua a ser extremamente incerta e volúvel. Não por acaso, perante esta equação impossível de continuar a sustentar os níveis de dívida atual mantendo um regime democrático e alguma perspetiva de crescimento económico, se ouve de um lado quem reclame que se tem de reestruturar a dívida (alguma forma aliviar o custo anual da dívida) e, de outro lado, quem (como o Bundesbank – banco central alemão) procura alternativas criativas à austeridade que lhe parece agora condenada ao fracasso, nomeadamente obtendo essa “reestruturação” da dívida por via de um imposto global sobre a riqueza existente nos países mais endividados (depósitos, ações, etc.). Não detalharemos esta segunda opção mas cumprida sem salvaguardas e sem compromissos internacionais duradouros (no fundo uma reforma institucional de monta na Zona Euro), revelar-se-ia o pior dos dois mundos, uma espécie de saída do euro só com a parte má. Para concluir, o que queríamos sublinhar é que nesta história de dívida e défice, o que é fundamental é garantir por cada euro de dívida, a riqueza nacional aumente mais do que esse euro obtido a crédito, adicionado do respetivo juro a pagar. Nesse caso, o endividamento eterno não só não é problemático como é uma excelente ingrediente para dinamizar o crescimento. E, pasme-se pode até um país viver centenas de anos com défices crónicos a gerir a dívida… Por outro lado, não podemos ignorar todos os fatores internos mas também externos que podem mudar radicalmente e num ápice a apreciação que os nossos credores têm ou podem ter da nossa capacidade de pagar a dívida. Qualquer sistema monetário, económico e político em que estejamos inseridos que possa reproduzir o que a Zona Euro gerou em 2010 (e ao longo de toda a esta crise até hoje), com uma violenta traição às expectativas de mercado, altera de forma dramática qualquer relação normal com o mercado da dívida e a gestão interna de um Estado soberano. Em suma, saber investir e garantir um enquadramento político e institucional salubre são chave para o nosso futuro. É por aí que devemos avaliar os erros do passado e julgar as propostas de relações internacionais que tenhamos ou não disponíveis na União Europeia. Como se vê, os nossos problemas estão longe de se resumir ao mandamento da culpa da dívida ou das culpas exclusivamente nacionais. E o mandamento de que é preciso acabar com o défice, dito assim, sem o verdadeiro entendimento da utilidade do dinheiro e da sua aplicação, acaba por valer de muito pouco. Bons negócios!"

Penso tratar-se duma abordagem sobre este tema que considero muito educativa. Dá para uma boa reflexão, mas também, para pôr a nú algumas "verdades absolutas" que nos são vendidas todos os dias. Espero que vos seja útil.

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