40 anos depois da revolução dos cravos
Era uma manhã prenhe de neblina quando atravessei a Praça da Liberdade em direção ao meu local de estudo. Ao fundo da Avenida dos Aliados, junto à Câmara Municipal do Porto estavam estacionados alguns Chaimites do exército. Achei estranho, mas pensei que fossem alguns exercícios, afinal estávamos em guerra em África. Mais tarde, e já com as aulas a decorrer, vim a saber que algo de extraordinário se passava. Os militares estavam a fazer um golpe de Estado, embora ainda não se soubesse ao certo qual a orientação. As notícias foram chegando a conta-gotas, - nesse tempo ainda não havia internet, nem telemóveis e a televisão estava reduzida apenas à RTP oficial a preto e branco -, pouco se sabia, mas no ar existia algo de estranho. À medida que o sol foi irrompendo no céu, as notícias já eram mais consistentes. De facto, existia um golpe de Estado para derrubar a ditadura. Como é normal nestas coisas, os estudantes assumem logo uma posição mais determinada. As aulas foram suspensas. Nessa tarde viemos para a Avenida dos Aliados ver o que se passava. Já era clima de festa. Já se dava por terminado aquilo que ainda levaria horas a concluir. Mas o povo estava na rua, - já não queria acreditar que se voltasse atrás -, confraternizava com os militares. Era a esperança a ocupar um espaço que antes era tido por um lugar de repressão pela tropa de choque do regime. Era uma Primavera nova e diferente esta que se nos abria no horizonte. Depois, já todos conhecemos a estória. Foram os tempos em que o poder andou pelas ruas, foram os tempos das utopias, foram os tempos da busca dos impossíveis. Mas tudo isso tinha uma razão de ser. Era a liberdade que passava por aqui, depois de muitos anos de ditadura. Havia pessoas como eu que nunca a tinham conhecido, apenas com ela contactava quando saía as fronteiras, e isso era um privilégio de poucos. Com altos e baixos, com avanços e recuos, lá se foi construindo a democracia. Foi a respeitabilidade para a escola pública, foi a criação do Serviço Nacional de Saúde, que foi modelo para muitos países por esse mundo fora, foi a dignificação do ser humano enquanto tal, livre como é a sua essência desde que nasce. Por isso, olho com tristeza para o que se está a passar agora entre nós. 40 anos depois, um grupo de pessoas tomou o poder legitimado pelo voto, (valor supremo da democracia), e com essa legitimação para governar têm-na usado para destruir aquilo que o 25 de Abril criou. Um país despedaçado, empobrecido. Um país esmagado pelo peso dum grupo de pessoas que nos entraram pela porta adentro, mas sobretudo, um país destruído por um grupo de jovens que ocupam momentaneamente os corredores do poder, que se deslumbraram e viram a oportunidade de impor a sua agenda política à muito fechada na gaveta à espera do tempo certo. E esse tempo aí estava e legitimado. Esse grupo de jovens que ocupa momentaneamente o poder, achou que estava legitimado para tudo e começou o seu ajuste de contas com o regime e a democracia. Afinal o memorando da "troika" servia muito bem para se esconderem atrás dele. Pessoas que nunca viveram em ditadura, ou dela não terão grande memória, acham-se uma espécie de deuses. Não é a "troika" que devemos refutar, mais do que isso, devemos rejeitar aquilo que, em nome da "troika" se está a fazer a este país. 40 anos depois, a esperança praticamente já não existe. Olho para as pessoas e vejo os mesmos rostos fechados, cinzentos, tristes, os mesmos rostos que vi-a à 40 anos. Vejo que muita gente já descrê da democracia face áquilo que ela lhes trouxe pela mão duns jovens que momentaneamente ocupam os corredores do poder. Dói-me que assim seja, mas compreendo. Talvez por isso, o 25 de Abril este ano seja celebrado em dois palcos distintos, o da cerimónia oficial na Assembleia da República e o do histórico Largo do Carmo onde os militares de Abril, e não só, estarão. À mesma hora, simbolizando que há duas maneiras de olhar para esta data histórica. A oficial, vazia de conteúdo, onde nem os militares estarão, - "o problema é deles"! -, e a mais genuína feita por quem há 40 anos tudo arriscou - prisão, inclusive a vida - para que existissem pessoas como estas que ocupam momentaneamente os corredores do poder, com legitimidade para a destruir. Nós todos, também temos que fazer a nossa escolha. Eu já fiz a minha.
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