
"Desenha-me uma árvore, desenha-me o sol, um sol a sorrir, com sobrancelhas e nariz, desenha-me nuvens com cerejas penduradas. Desenha-me uma vaca. Ou um gato. Ou um elefante, já agora. Uma casa com um quintal. Isso: desenha-me uma casa com um quintal e nós dois à janela. Conta-me uma história. Não te vás embora ainda, conta-me uma história que acabe bem, com pessoas felizes para sempre. Mente-me. Faz o favor de me mentires desde que sejam mentiras que eu goste. Dá-me uma colher de compota, ervilhas com ovos escalfados, um beijinho na testa. Não custa muito, um beijinho na testa, de modo que a marca do baton fique na pele. Depois diz-me. Podes ir e eu vou, não me arrasto por aqui a maçar-te, prometo, a ler o jornal, a ocupar espaço, a encher tudo de fumo, a deixar cinza no chão. Aprendi a perceber quando as coisas acabam e, depois de onze anos de casados, é assim tanto pedir-te que desenhes uma árvore? Não te incomodes com o papel, qualquer papel serve, nem vale a pena procurares uma caneta, usa o lápis dos olhos, aquele com que, ao princípio, me sujavas o colarinho. Até nem me rala que ponhas a árvore, ou o sol, ou as nuvens no colarinho, se me perguntarem explico." - António Lobo Antunes in 'Quinto Livro de Crónicas'.