Neste tempo de incerteza, por vezes de algum desassossego, diria mais, de grande desalento, ficamos perdidos à beira da estrada sem saber o que fazer. Mas aí, talvez as palavras dos grandes pensadores - que foram iluminando o pensamento ao longo dos séculos - nos dê a ajuda necessária para irmos em frente. Mergulhando nas suas palavras e, por vezes, nos seus exemplos, adquirimos a força e a coragem necessárias para continuar. Eu, que tanto vos tenho falado e escrito sobre a morte, - embora como diz o grande poeta Carlos Paz, "a morte ilumina a vida" -, hoje trago-vos os testemunhos da vida. Eis o que conta de si mesmo o Sufi Bayazid: "Na minha juventude eu era revolucionário e rezava assim: - Dai-me forças, ó Deus, para mudar o mundo. Mas notei ao chegar à meia-idade que metade da vida já passara sem que eu tivesse mudado qualquer pessoa. Então mudei a minha oração, dizendo a Deus: - Dai-me a graça, Senhor, de transformar os que vivem comigo dia-a-dia, como sejam a família e os amigos; e com isso já me dou por satisfeito. Agora que sou velho e já com os dias contados percebo bem quanto fui tolo ao rezar assim. E a minha oração, agora, é apenas esta: - Dai-me a graça, Senhor, de me mudar a mim mesmo. Se eu tivesse orado assim, desde o princípio, não teria desperdiçado a minha vida". Todos pensam em mudar a humanidade, quase ninguém pensa em mudar-se a si mesmo. Porque achamos sempre que os outros é que estão mal, ou porque não temos a força suficiente para isso. De acordo com a velha fórmula inscrita no pórtico do Oráculo de Delfos, estamos perante o "conhece-te a ti mesmo". No fundo estamos a andar em torno do que Sócrates já tinha afirmado: "Só sei que nada sei". A simples constatação desta verdade incontornável é um acto de humildade, porque a nossa busca por conhecimento esbarra sempre em mais e mais, dando a sensação do inatingível, da fronteira do impossível. Mas a fronteira do impossível vai-se dilatando, ora pelo conhecimento científico, ora pelo conhecimento espiritual, que leva a que nos conhecemos melhor face aos outros e ao mundo. Muitas vezes essa inacessibilidade quando é atingida torna-se em dúvida, a "dúvida metódica" que tão bem foi descrita por Jean-Paul Sartre. "Duvido de tudo, mas ao duvidar estou pensando, e se penso existo", dizia René Descartes. A dúvida como método de pensamento, que nos dá a sensação de existencialidade. Mas o simples facto de agir, o simples gesto de experimentar, o simples facto de mudar não são simples. "Age de tal modo que a máxima da tua acção se possa tornar princípio de uma legislação universal", dizia Immanuel Kant. Mas o simples facto de agir, por vezes é condicionado pelo nosso medo de errar, pelo nosso medo de falhar, na casa, na empresa, no dia-a-dia, na vida. Parafraseando Paulo Freire: "Ninguém nasce feito, é experimentando-nos no mundo que nós nos fazemos". Mas nem sempre é fácil. Para cada um de nós, e para nós face aos outros. Porque a experiência encerra em si o erro, a falha, a derrota, e nem sempre somos capazes de lidar com isso, sobretudo, num mundo cada vez mais competitivo, onde só os fortes vencem, porque são mais fortes, ou porque têm menos escrúpulos do que os restantes. Esses restantes, rastejam na ignomínia da existência menor e frustrante, não vendo quase sempre, reconhecidos os seus méritos, e podem crer que alguns os têm de facto, e muito apurados. Nem sempre as boas palavras resolvem tudo, nem sempre os grandes pensamentos filosóficos nos atenuam a dor da incompreensão. Todos nós temos necessidade de alimentar a nossa auto-estima, e o reconhecimento dos outros é, por ventura, um bálsamo para o ego. Mas esse reconhecimento nem sempre o temos na nossa vida, e isso dói, porque desde que nascemos até ao dia que morremos, somos amplamente treinados para a competição, em casa, na família, no emprego. Sem limites, sem escrúpulos, passando por cima de tudo e de todos, porque essa é a regra. O espaço para a cultura, para o pensamento superior, foi substituído pelo imediatismo materialista. Só quem tem bens é importante, a cultura é algo bizarro que, segundo alguns, não dá de comer a ninguém. Por isso, se está a assistir na sociedade e no mundo, a um nivelamento por baixo, onde a erudição vai desaparecendo, - e o pensamento também -, substuída pela bussalidade, que tende a ser o normal, numa sociedade materialista, sem valores, sem ética. Muito se tem falado de ética e de valores, mas pouco se tem feito em prol deles. A nossa sociedade é disso exemplo, mas as outras sociedades, pretensamente mais evoluídas, não são melhor exemplo para nós e para o mundo. A importância está, cada vez mais, no poderio do dinheiro, na capacidade de influenciar países ou pessoas, não no conhecimento. Como dizia Eduardo Lourenço, de cima dos seus sábios 85 anos, "o nosso mundo, na aurora de um novo milénio, segundo o calendário crístico, parece-se com um dos grandes aeroportos onde a humanidade se cruza sem se ver". Quão sábias são estas palavras, no nosso mundo de indiferença pelo outro - muitas vezes, no seio da nossa própria família - pelo desprezo dos valores dos nossos maiores, pela política do "vale tudo", se esta nos propiciar algum provento no imediato. Estes são os caminhos ínvios do ser humano, desprovido de valores, de sentimentos, reduzido (mesmo que inconscientemente), a autómatos dum jogo mais abrangente sem remorsos, sem piedade. Esta é a forma que vamos assumindo, conscientemente ou não, face à nossa fragilidade como seres humanos de passagem por este mundo. Actores circunstanciais duma representação mais vasta, onde não vislumbramos, nem o autor, nem o encenador. Ainda retomando Sartre, "antes de vivermos, a vida é coisa nenhuma". Daí a experimentação que, socialmente, nem sempre é aceite nesta caminhada, no assumir da nossa "lenda pessoal" que vamos cumprindo, - como diria Paulo Coelho -, dia após dia, nem sempre com a determinação dum César ou dum Napoleão Bonaparte, mas com a determinação do instinto animalesco de sobrevivência que a todos preenche, que vem gravada no nosso ADN. Nesta caminhada para o Natal, - já faltam poucos dias - paremos um pouco, e façamos alguma reflexão, atenuando embora minimamente, a senda consumista que, infelizmente, absorve quase na totalidade, esta época festiva.