Turma Formadores Certform 66

Tuesday, August 28, 2012

A andorinha e os pássaros


De tanto viajar, uma andorinha havia aprendido muitas coisas. Sabia prever as tempestades, e anunciava-as aos marinheiros com antecedência suficiente para que pudessem escapar delas. Certo dia, vendo um lavrador semear o cânhamo, colocando os grãos nos sulcos abertos na terra, a andorinha disse aos outros passarinhos: - Estão vendo aquela mão que lança as sementes de cânhamo? Não está longe o dia em que será maldição para todos vocês aquilo que ela está plantando. Surgirão redes e laços para aprisioná-los. E ouçam-me bem. Ocorrerão coisas que lhes causarão a morte ou a prisão. Que Deus os livre da gaiola e da panela. Comam já os grãos ali plantados, e agradecerão o meu conselho. Os passarinhos riram da andorinha, e não lhes custou esquecer rapidamente o que ela lhes dissera. (...) Quando a plantação já estava verde, a andorinha tornou a dizer-lhes: - Arranquem um por um esses pés de cânhamo, e estarão evitando a própria desgraça. - Ora - responderam os passarinhos - isso seria tarefa para milhares de nós, e além disso não acreditamos nesse seu mau augúrio. - Prestem atenção no que lhes digo. Quando os lavradores virem que é chegada a hora, armarão redes e alçapões para protegerem sua plantação, e então não adiantará nada vocês ficarem voando de um lado para o outro. Os passarinhos já estavam, porém, cansados de ouvi-la, e afastaram-se. Pouco depois, sofriam perseguição, prisão e morte. Moral da Estória: Só nos importamos com o mal quando ele se abate sobre nós.

Monday, August 27, 2012

Equivocos da democracia portuguesa - 199

"Amanhã, santo amanhã de Portugal, que bons sonos deixas dormir à gente! Que nos importa a nós que as outras nações andem porque aproveitam o dia de hoje, se nós, por ti, dormimos e somos felizes como uns lazzaroni sem cuidados!" - In "O Arco de Sant'Ana" de Almeida Garrett. Voltamos de novo a Garrett como já tínhamos feito na crónica anterior. E tudo isto por um assunto que nos vem ocupando a mente nos últimos dias e que se prende com a privatização - aliás, concessão - da RTP. Já muita tinta correu sobre este caso e muita ainda há-de correr estamos certos. Desde logo o anúncio feito por António Borges um consultor do governo e não o ministro Relvas - o tal que tira cursos com uma rapidez supersónica! - que não teve coragem para o fazer. Aquilo que se pensava ser uma diatribe dum consultor - que já não é a primeira vez que faz tais partidas ao executivo - veio-se ontem a saber que afinal ele o terá feito com a concordância de Relvas. Quem o afimou foi Marcelo Rebelo de Sousa que disse saber isso de fonte segura. Não deixa de ser curioso que Relvas - o tal dos cursos rápidos! - não tivesse a frontalidade para o fazer tendo recorrido a uma "lebre" - para usar um termo muito utilizado no atletismo - e, não deixa de ser ainda mais curioso que António Borges se tenha prestado a isso. Enfim, razões que a própria razão desconhece. E ficamos a saber que quem ficar com a concessão não paga nada e ainda vai ter um chorudo lucro assegurado à partida. Isto é, a delapidação dum bem público que nem ao desbarato será alienado, antes oferecido. E Marcelo alertou e bem, que o PSD e o CDS não tenham a tentação de colocar uma entidade neste processo liderada por um dos seus militantes, o que daria a ideia de que estes partidos controlariam o processo durante vinte e cinco anos independentemente de estarem no governo ou não. Embora, mesmo que se acautele essa questão, nada obsta a que se coloque lá alguém que, mesmo não sendo militante, vai gerir os interesses de tais forças políticas. Como se não bastasse tudo isto, ainda ficamos a saber que a RTP2 vai ser encerrada. E logo se levantaram coros de indignação. Embora não concordemos com o seu encerramento, está claro o processo. Este governo mostrou desde o seu início como olhava enviesadamente para a cultura. O fim do ministério e a criação duma secretaria de Estado são bem prova disso. Agora a RTP2 que, curiosamente, faz mais serviço público que o próprio canal1, salvaguardando a cultura, e a identidade nacionais, estará a caminhar para o seu fim. E isto que surpreendeu muita gente afinal não o deveria ter feito. Esta situação está em linha com o entendimento que o governo tem da cultura em Portugal, o mesmo entendimento que o leva a propor o encerramento da Fundação Paula Rego, que perpetua o nome da mais famosa artísta portuguesa da atualidade a nível nacional e internacional e depois dela própria ter oferecido quadros à Fundação no valor de 1 milhão de euros! Afinal um povo sem cultura é mais dócil, é mais facilmente controlável. Já tínhamos visto isto no passado, num passado que achamos que estaria irradicado do nosso país, mas afinal enganámo-nos. Mas apenas ainda queríamos deixar esta singela questão. Porque será que se fala tanto da alienação, concessão, ou seja lá o que for, que o governo tem reservado para a RTP, precisamente no momento em que esta apresenta lucros? Não será que não andam por aí interesses outros, nacionais ou estrangeiros, a quem foi prometida a empresa? E mais uma vez recorremos ao nosso Garrett: "Estou pensando... e não se arrepiem os meus amigos liberais!... Que pelo jeito que as coisas levam, ... e para se defender do omni-absorvente despotismo dos senhores das burras, dos alcaides-mores dos bancos e de todo este feudalismo agiota, que é fatal lepra da democracia, que a rói e a carcome, e que não vejo forças nem meios - na democracia só - para os combater.". - In "O Arco de Sant'Ana" de Almeida Garrett. Mas este assunto que tem ocupado os "media" nestes dias, tem feito esquecer um outro que é deveras mais importante porque condicionará a nossa vida futura, neste futuro imediato que nos consome. Trata-se do buraco colossal nas contas públicas a que já fizemos referência na crónica anterior. Este é deveras um grave problema que irá condicionar a nossa vida porque ou a "troika" aceita uma renegociação dos prazos ou então a austeridade cairá ainda com mais violência sobre todos nós. Aliás, o PSD já foi ensaindo os passos da dança a preparar este cenário. Parece que o governo, neste como noutros casos, tem medo de enfrentar as populações, onde se incluem muitos que lhes confiaram os seus votos. Pela maneira como as coisas se apresentam, não só este ano o déficit não atingirá o valor de 4,3% assumido no "memorandum", nem no próximo os 3,5%. E como dizíamos atrás, ou o governo negoceia novos prazos - contrariando a posição do PM que disse que nunca o faria -, ou se continua com a política do "custe o que custar" o país sairá ainda mais esmagado do que já está. E chegados aqui, há que lembrar que a política de mais austeridade não cria emprego, não ajuda as empresas, não potencia o crescimento económico. E assim sendo, as receitas do Estado serão cada vez mais curtas e terão que ser compensadas pelo lado da despesa. E aqui é que o problema se coloca. Como temos assistido, o Estado tem sido incapaz de cortar na despesa duma forma efetiva e consistente, logo o recurso a mais austeridade - normalmente por aumento da carga fiscal - será a solução. Uma solução já tão nossa conhecida e que tem sido transversal a vários governos. A espiral recessiva continuará e não veremos tão cedo a luz ao fundo do túnel, mas apenas mais e mais túnel. Mas para isso temos os nossos políticos, oradores brilhantes quase todos, para embalar na sua verborreia os portugueses. Recorremos de novo a Garrett: "O efeito narcótico desta eloquência admirável começava a manifestar-se na assembleia dos paços do concelho do Porto pelo mesmo modo que, tantas vezes depois, vimos e sentimos nos paços de S. Bento em Lisboa. Os vereadores cabeceavam todos; Vasco sentia um pesadelo mortal que o oprimia e adormentava como num mau sonho de febre; os mais exaltados chefes da multidão bocejavam atrozmente. E ali se acabaria toda a disputa, como acabou aquela briga dos borrachos, porque em vez de brigar, adormeceram..." - In "O Arco de Santa'Ana" de Almeida Garrett. Esperamos que agora, a menos de vinte e quatro horas de se iniciar a quinta avaliação da "troika" não adormeçamos, nem nos deixemos adormecer por quaisquer cantos de sereia. Se nada for alterado, a recessão continuará num ciclo de empobrecimento que vemos diariamente noutros países como a Grécia. Os ajustamentos que a "troika" impõe nos seus planos de resgate são praticamente inexequíveis. Estes já devem ter percebido isso. O FMI já foi dando sinais disso mesmo, quanto aos outros parceiros ainda nada vimos. Achamos que a "troika" precisa urgentemente dum caso de sucesso, mas com os planos que definem, sempre iguais independentemente das particularidades dos países, não o conseguirão tão cedo e, infelizmente, também não seremos nós a dar esse exemplo. Ou há ajustamento ou será o caos. Pensamos que hoje já ninguém tem dúvidas, mesmo para mentes ultraliberais como aquelas que nos governam. E aqui, vem-nos à memória a frase de Boileau: "Rien n'est beau que le vrai". Talvez o exemplo Islandês seja a solução, mas não assumida por ninguém. É que quando nos dizem que não existe outro caminho não nos estão a dizer a verdade. O caso da Islândia é disso exemplo, por isso se fala tão pouco dele até porque é um caso incómodo. Faz-nos lembrar o sheakespereano Hamlet: "There are more things in heaven and earth, Horatio, Than are dreamt of in your phylosophy". É altura de despertarmos para a realidade ou de naufragarmos na inanição...

Sunday, August 26, 2012

Conversas comigo mesmo - CVII

Escolhei hoje. Esta é, no essencial, a mensagem deste vigésimo primeiro domingo do tempo comum. A história de cada um de nós é quase sempre o resultado das opções que, para bem ou para mal, fizemos, ou das decisões que acertada ou desacertadamente fomos tomando ao longo da vida. Estas opções ou decisões têm às vezes especial importância e as suas consequências são irreversíveis. Pensemos, por exemplo, no momento em que alguém se decide por uma profissão ou carreira, ou quando elege a pessoa com quem vai compartilhar a vida matrimonial. A sua felicidade ou desgraça, a fecundidade ou esterilidade da sua vida têm a sua raíz, muitas vezes, nesses momentos. A liturgia da palavra põe hoje, precisamente, em destaque a opção e a decisão pessoal que somos chamados a fazer em relação a Deus. É que a fé, sendo antes de mais, um dom de Deus - "Ninguém pode vir a Mim se não lhe for concedido por Meu Pai" - é, também uma opção que temos que fazer: "Também vós não quereis ir embora?" E trata-se de uma opção que não podemos iludir nem adiar, pois ela é fundamental e decisiva no rumo e na qualidade da nossa vida. Mas a tentação é ficarmos pelo cinzento, para evitarmos a opção "branco ou preto", é ficarmos pelo morno, para evitarmos a opção "quente ou frio". Não gostamos, realmente, de nos enfrentar com certas disjuntivas. No entanto, aí está a palavra de Deus a dizer-nos que não podemos servir a dois senhores: "Escolhei hoje a quem quereis servir..." No entanto, no dia de hoje também aparece S. Paulo a dizer que: "Mulher obedecei a vossos maridos" para acrescentar: "Maridos amai as vossas mulheres". Isto, à luz dos dias de hoje, pode-nos fazer arrepiar, sobretudo, quando fazemos um juízo apressado. Se na primeira parte parece que S. Paulo estava a defender uma qualquer tese machista, ele apenas estava a por em confronto a família como núcleo fundamental na relação com Deus, já na segunda parte da frase isso se desvanesse, o que pode levar a alguma confusão. De facto, S. Paulo não estava a ser machista, até arriscava a sua lapidação, porque nesse tempo a mulher não valia nada, era um simples objeto, e a maneira como ele incita os homens a amá-las era, nesse tempo, uma fonte de escândalo, até quiçá, de ignomínia. Daí que uma leitura apressada pode levar-nos a uma interpretação menos feliz, se não recorrermos ao enquadramento temporal em que estas afirmações foram produzidas. Mas voltemos ao nosso grande tema de hoje, a escolha. A fé é a opção por Deus, como único absoluto da vida. Opção cada dia posta à prova, pois em cada dia o nosso eu tende a relativizar Deus e a absolutizar-se a si próprio, a prestar culto às criaturas ou aos ídolos que suas mãos criaram, a saber, o dinheiro, o poder, o conforto, o prestígio, o prazer, a ideologia, a moda. Ídolos-pessoas, ídolos-coisas ou ídolos-ideias. Ìdolos que nos prometem muito mas que acabam por nos empobrecer, mutilar, escravizar. Saibamos, pois, optar: "Também nós queremos servir o Senhor!".

Saturday, August 25, 2012

"O Arco de Sant'Ana" - Almeida Garrett

Ontem, a propósito doutro tema, citei o excelente romance de Almeida Garrett, O Arco de Sant'Ana. Hoje venho apresentar o romance que serviu às citações de então. Assim, trata-se dum romance histórico, de Almeida Garrett, em dois volumes, publicados entre 1845 e 1851. Segundo palavras do próprio Garrett, teria sido enquanto aquartelado no Convento dos Grilos, durante o cerco do Porto, que o autor teria começado a escrever O Arco de Santana. A intriga, baseada num trecho da Crónica de D. Pedro I, de Fernão Lopes, decorre justamente no Porto medieval, evocando a vida social e política do burgo, agitada pelos motins do povo, representado pelos mesteirais, conduzidos pelo jovem Vasco e apoiados pelo rei D. Pedro, em luta contra a oligarquia política, encarnada no Bispo, senhor feudal perverso e déspota, e nos seus acólitos, em especial Pero Cão, cobrador de impostos. Como os leitores da época compreenderam e os críticos têm vindo a salientar, Garrett recriava no século XIV os conflitos políticos e religiosos que eram os da sociedade do seu tempo, nomeadamente a reação cabralista, apoiada pela Igreja, que visava dissolver o liberalismo e restaurar o poderio eclesiástico. Livro que apesar de ter sido escrito no século XIX apresenta uma extraordinária atualidade face à situação que hoje se vive no nosso país. Daí o recomendar a leitura ou, eventualmente, releitura desta obra. Há variadíssimas edições, aquela que me serviu de base é da Editora Civilização.

Friday, August 24, 2012

Equivocos da democracia portuguesa - 198



Ontem fomos surpreendidos - ou talvez não! - pelos números divulgados pela Direção Geral do Orçamento (DGO). Ficamos a saber que temos este ano um buraco colossal de 3 mil milhões de euros para a execução orçamental ainda para este ano de 2012. Isto significa que o ambicionado e imposto déficit para este ano de 4,5% está definitivamente comprometido. Já vínhamos afirmando que tal seria quase impossível com as medidas que estão a ser impostas. Senão vejamos: a imposição de restrições - algumas que vão muito para além do memorando da "troika" - fizeram que o país entrasse em recessão, o desemprego atingisse números históricos - e não vai ficar por aqui! -, logo, se as famílias têm menos dinheiro acabam por comprar menos, a produção terá que ser ajustada pelas empresas, o que inevitavelmente, conduz ao aumento de desemprego. Se há menos emprego, há mais contribuições do Estado para esses trabalhadores que viraram improdutivos contra a sua própria vontade, o IRC vai contrair-se porque as empresas estão com mais dificuldades, como existem menos transações o IVA dá menos receita e assim sucessivamente, vai daí as receitas fiscais - chamemos-lhe - normais - por parte do Estado vão diminuindo. E a recessão não só continua como se agrava. O único imposto que aumenta é o IRS, imposto que incide sobre os rendimentos do trabalho a que não se pode fugir. Com este cenário, para além da contração da economia, vai aparecendo cada vez mais florescente, a economia paralela. É de qualquer manual básico de economia que o aumento de impostos quando ultrapassa a chama "propensão marginal" conduz a uma diminuição da receita fiscal. Qualquer aluno de economia dos primeiros anos sabe isto, mas parece que entre nós há quem pense que pode aumentá-los indefinidamente, e que cobra sempre mais e mais. É caso para dizer que nem no tempo do Robin Hood tal acontecia!!! Daí que estamos em apuros, e normalmente nestes casos, o Estado utiliza a maneira mais rápida e fácil de obter fundos para controlar o déficit que é... aumentar ainda mais os impostos. Mas em Portugal a carga fiscal já é excessiva, já se ultrapassou aquilo a que os economistas chamam "propensão marginal", daí que tenhamos alguma curiosidade em saber o que vai sair da cartola. Não será seguramente um coelho porque esse já lá está - no governo, bem entendido -, ficando a pergunta de saber que outra coisa será afinal? Claro que, também se pode recorrer - mais uma vez - às chamadas "receitas extraordinárias" - embora o PM tivesse afirmado que nunca mais o faría, mas nós sabemos o que vale a palavra de político - e ainda o puderá fazer recorrendo às pensões da banca. Claro que tudo isto tem um significado que Miguel Beleza define muito bem como "receitas desonestas", ou seja, dar a volta à situação fazendo parecer que tudo está bem e mesmo controlado, o que não é o caso, infelizmente para nós todos. E mesmo para aqueles que falam no exemplo das intervenções anteriores do FMI no passado em Portugal, é bom dizer, que tal nada tem a ver com a situação atual. Nessa altura discutia-se um valor na casa dos 73 mil milhões de euros, hoje discute-se 730 mil milhões de euros, ou seja, dez vezes mais!!! Nessa altura, podíamos desvalorizar a moeda e hoje não, nessa altura podíamos manipular as taxas de câmbio e hoje não, diríamos até que felizmente, porque o efeito é sempre de curto prazo. Chegados aqui, vem-nos à memória as palavras de Almeida Garrett in "O Arco de Sant'Ana": "... e consultando e deliberando estavam. Mas o resultado de todas estas consultações e deliberações tinha sido aquele tão legítimo, tão clássico e proverbial português de: amanhã veremos". Claro que do lado do PSD o seu porta-voz apressou-se a dizer que tudo está a correr pelo melhor, o que levou a que um seu correligionário de partido e conselheiro de Estado, António Capucho, tivesse que admitir que se deve ter tratado dum "lapsu linguae" para não dizer coisa pior. Logo a seguir, vieram apressadamente dizer que afinal talvez seja preciso mais austeridade para se cumprir os famosos 4,5% do PIB. É que não está só em causa a execução deste ano, mas também a do próximo, será bom não esquecer. E chegados aqui, será legítimo perguntar afinal para que foram os sacrifícios dos portugueses? Como o Estado ainda não foi capaz de reduzir as suas despesas duma forma significativa, fica a ideia de que os portugueses em geral, as empresas privadas, fizeram a sua parte, mas o governo não, ficou "de catedra" a ver o país depauperado e miserável. Triste sina a nossa, que tais governantes tem, afinal aqueles que, como dizia Miguel Macedo - hoje ministro! - que tinham a solução para em dois ou três meses resolver o problema. Agora se vê a falta de seriedade porque ou o ministro - então líder parlamentar do PSD - não sabia o que dizia, ou a medida de tempo do atual ministro da administração interna é bem diferente da utilizada no sistema métrico convencional. De colossal buraco em colossal buraco, Portugal vai-se afundando, - e nem o otimistmo do Pontual nos salva -, onde não existe a coragem governamental de admitir que o caminho seguido está errado e optar por outros rumos, - António Capucho dixit -, que os há, embora se tente fazer crer que não. Ou esta política, ou o dilúvio. O que do modo como as coisas vão, não parece existir qualquer diferença entre elas. Mais uma vez olhamos para o escrito de Garrett: "Assente e aceite este grande ultimatum da política portuguesa, que mais há que fazer? Os ministros adormecem nos seus gabinetes doirados, os senadores nas suas curuis de marfim, e os próprios tribunos - quando os há - roncam nos seus escanos de pinho, porque tudo está dito e tudo está feito. Boas noites, amada pátria, e até amanhã".
 

Wednesday, August 22, 2012

O Talismã - Guerra Junqueiro



 Dois habitantes da mesma cidade exerciam nela a mesma indústria, mas com resultados bem diversos; um enriquecia-se e o outro arruinava-se, o que não era de espantar, porque o primeiro zelava os seus negócios com uma atividade infatigável, enquanto que o segundo, entregue inteiramente aos seus prazeres, encarregava os estranhos da direção da sua casa. «Explica-me, disse um dia este último ao seu colega, qual é a razão porque a sorte nos trata de um modo tão diferente? Vendemos as mesmas mercadorias, a minha loja está tão bem situada como a tua, e apesar disso, enquanto tu ganhas, eu não faço senão perder. E não é porque eu seja estroina; não bebo, nem jogo. Já tenho pensado algumas vezes se não terás tu por acaso algum precioso talismã.» «Efectivamente, respondeu o outro, herdei de meu pai um talismã de uma virtude incomparável. Trago-o ao pescoço, e ando assim com ele todo o dia por toda a casa, do celeiro para a adega, e da adega para o celeiro. E o caso é que tudo me corre perfeitamente.» «Olé meu querido colega, empresta-me pelo amor de Deus essa relíquia preciosa de que tanto necessito; podes ter a certeza de que ta restituo.» «Pois vem buscá-la amanhã de manhã.» Quando ao outro dia foi procurar o seu generoso concorrente, apresentou-lhe este uma avelã, através da qual tinha passado um fio de seda. O nosso homem pô-la imediatamente ao pescoço, e começou a correr toda a casa com o talismã. Observou então a completa desordem que por toda a parte ali havia. Na adega faltava-lhe vinho, cerveja e azeite; na cozinha o pão, a carne e os legumes; no celeiro, o milho, o trigo, o feijão; na estribaria, o feno e a aveia, roubados das manjedouras dos cavalos; viu, finalmente, como os seus livros e registros estavam mal escriturados; viu tudo isto, e que era necessário dar-lhe remédio, compreendendo que o dono da casa nunca pode ser substituído por terceira pessoa na direção dos seus negócios. Passados alguns dias foi entregar ao dono o precioso talismã, agradecendo-lhe duplamente, em primeiro lugar, o seu bom conselho, e em segundo lugar, a maneira delicada porque lho tinha dado.

Monday, August 20, 2012

Equivocos da democracia portuguesa - 197

Na passada semana fomos surpreendidos - ou talvez não! - com um novo e triste recorde de desemprego que atingiu os 15%. A este número, se juntarmos os recém-licenciados que não o encontram e os que desistiram de procurar emprego, este valor atinge os 20%, ou seja, fica acima do milhão e trezentos mil desempregados. Para além disso, o PIB continua a diminuir, - agora caiu 3,3% - a economia continua a afundar. Para utilizar uma expressão do Prof. Silva Lopes "Portugal está em recessão consecutiva à sete semestres. Este é o maior período desde 1978". Apesar deste descalabro, que não é de todo surpreendente, o PM na festa do Pontal à porta fechada, (não vá o diabo tecê-las), afirma que o próximo ano será de leite e mel a escorrer pelas paredes dos portugueses. Para 2013 não haverá recessão, afirma Passos Coelho, numa afirmação temerária que para se concretizar terá que haver um crescimento imenso para contrariar a tendência. Para se passar dos 3,3% deste ano para um valor positivo, o crescimento tem de ser astronómico, mas mesmo assim, o PM arrisca o prognóstico. Logo no dia seguinte, em entrevista à SIC Notícias, o ministro da economia vem desmentir, dizendo e bem, que há demasiados fatores - muitos dos quais não controlamos porque são externos - que podem levar a que não seja assim. Marcelo Rebelo de Sousa tem uma afirmação mais prosaica: "Passos Coelho não falou como economista mas como político e quis elevar a moral dos portugueses". Agora os portugueses têm que descodificar quando se fala numa condição e noutra. Depois de outros políticos terem anunciado o fim da crise, chegou a vez de Passos Coelho, potenciando assim o descrédito que os políticos e a política têm junto das populações. Será inevitável a renegociação da dívida para que Portugal comece a dar sinais de crescimento coisa que para já, e com esta política, não nos afigura possível, afirmação corroborada por Silva Lopes. Para além disso, há necessidade dum plano de ajustamento que tem de ser curto para dar azo a que seja possível dar os passos necessários e rápidos, para que não se caía naquilo que se chama de "fadiga do ajustamento" (adjustement fatigue), como está a acontecer na Grécia. (Porque não seguir o caso de sucesso da Islândia, que ao arrepio de tudo e de todos, está a encetar uma recuperação histórica? Até o FMI já veio dizer que afinal este caso é ímpar, o que dá a ideia de que o FMI reconhece que as políticas que anda a aplicar estão erradas. E que pensar quando a Finlândia já vem dizendo que está preparada para o fim do euro!). No entretanto, as afirmações como aquelas que ouvimos vindas do Pontal, só servem para aumentar a descrença e a desmotivação entre os portugueses. Entre esse discurso e a realidade cotidiana de cada um de nós vai um imenso abismo. Mas há que ir preparando as eleições. Para o ano começa o ciclo eleitoral com as autárquicas. E Passos Coelho parece que afinal não se está a "lixar" para as eleições e já começa a pensar numa recandidatura para 2015. Este é o discurso político que por cá impera, irrealista, falso, inconsistente, onde a tergirvação e a perfídia, são palavras de ordem. E depois, ainda nos admiramos da situação em que estamos! Afinal até parece que, embora contestando, gostamos do que vemos porque se assim não fosse não os teríamos colocado lá. Enfim, uma política de equívocos, numa democracia de equívocos, num país que anda equivocado há já demasiado tempo.

Sunday, August 19, 2012

Conversas comigo mesmo - CVI

Hoje venho falar-vos duma proposta verdadeiramente assombrosa nos tempos em que foi proferida. Lê-se na Bíblia: "Disse Jesus à multidão: 'Eu sou o pão vivo que desceu do Céu. Quem comer deste pão viverá eternamente'." Comer e assimilar é a proposta revolucionária que nos é proposta neste domingo, o 20º do tempo comum. Jesus - o pão vivo - convida-nos a comer a sua carne e a beber o seu sangue. Claro que este convite não é para ser entendido à letra, como o fizeram, escandalizados, os judeus que escutavam Jesus. Comer é assimilar as coisas de que o nosso organismo precisa para a sua subsistência e para o seu desenvolvimento e dinamismo. Comer Jesus, comer a sua carne e beber o seu sangue, é assimilar Jesus. Assimilar a sua palavra e o seu exemplo, o seu sentido de verdade e da justiça, da bondade e da paz; o seu espírito de oração e de obediência ao Pai; a sua compaixão e solidariedade ativa para com todos, especialmente para com os mais humildes e sofredores, ou os mais desprezados. Assimilar Jesus é permanecer nele e viver a partir d'Ele. Não há pois verdadeira comunhão sem um desejo e um esforço sincero de purificar e de corrigir a nossa maneira de pensar, de sentir e de proceder à luz do amor de Cristo, amor de que a Euracristia é proclamação, sinal e fonte. Comungar bem, na verdade, não é questão apenas de abrir a boca mas o coração. Não é apenas "tomar" o Senhor mas antes deixar que o Senhor nos "tome" e dirija a nossa vida. Muitas vezes não pensamos nisto, ritualizamos as coisas e os gestos, o essencial, esse por vezes nem o vislumbramos. A proposta que aqui deixo talvez ajude a descodificar a situação a tornar-nos mais participantes e menos autómatos que proferimos palavras e fazemos gestos dos quais nem sempre sabemos o significado.

Thursday, August 16, 2012

Ágape - Padre Marcelo Rossi

No seu livro "Ágape", com prefácio de Gabriel Chalita, o sacerdote católico tece suas reflexões sobre passagens do Evangelho de São João e convida o leitor a enveredar por inspiradas orações. Os dicionários definem a palavra "ágape" como a refeição promovida pelos primitivos cristãos a fim de celebrar o rito eucarístico. O rito confraternizava ricos e pobres em torno de ideais como amizade, caridade e amor. Em Ágape, livro lançado pela Editora Globo no Brasil e a Porto Editora em Portugal, o Padre Marcelo Rossi retoma e amplia o sentido original do conceito: "Ágape é uma palavra de origem grega que significa o amor divino. O amor de Deus pelos seus filhos e ainda o amor que as pessoas sentem umas pelas outras inspiradas nesse amor divino", assinala no texto de introdução do volume. Com uma abordagem de comunicação moderna, original e leve, padre Marcelo leva conforto espiritual e ensinamentos da Igreja Católica para milhões de brasileiros - e não só - por meio de programas de rádio e TV. O estilo claro, direto e sereno que o transformou em fenómeno mediático está impregnado, agora, em Ágape, obra literária em que o autor apresenta trechos selecionados do Evangelho de São João e os reinterpreta à luz do significado do amor divino no mundo contemporâneo. Mais do que se apresentar como estudo teológico sobre os escritos narrados pelo apóstolo, o livro tem explícita intenção oracional. Nesse sentido, trata-se de um diálogo entre o autor, na condição de padre, e seus filhos em busca da boa palavra. Cada capítulo do volume se encerra com uma oração envolvendo os temas ali examinados pelo autor, como a convidar os leitores para um momento de introspeção e de acolhimento das mensagens de Jesus segundo São João. A escolha do Evangelho de São João entre tantas outras possibilidades dentro da Bíblia é justificada pelo Padre Marcelo pela beleza da estrutura literária e pela impressionante delicadeza com que são descritos os momentos da vida de Jesus - como se o apóstolo não se contentasse em apenas narrar os factos, mas quisesse nos trazer para dentro da situação descrita. Compartilhar a beleza das narrações do evangelista com os leitores é outro dos objetivos declarados do autor, que busca, com Ágape, incentivar cada vez mais a leitura da Palavra de Deus. Um livro interessante, mesmo para aqueles que, embora não sendo católicos, acreditam num Ser superior. A edição é, como já disse atrás, da Porto Editora.

Sunday, August 12, 2012

Conversas comigo mesmo - CV

E o prometido é devido! Chegou o tempo tão ansiosamente esperado de revelar o que até agora tem estado oculto. Helás! dirão alguns, finalmente! Embora já muitos de vós o soubessem, outros ainda se foram entretendo a adivinhar o porquê deste súbito e profundo afeto pela Inês do meu contentamento, a mais bela flor do meu jardim de Outono já desde há muito vestido. Este afeto não deixou de levar às mais variegadas conjeturas, mas nunca ninguém percebeu que a Inês é a minha (a nossa) adorada afilhada. Quando ainda no ventre da sua mãe, ela por cá apareceu para nos mostrar a ecografia e dizer que esta revelava que era uma menina e que o seu irmão Tiago gostava que se chamasse Inês, logo fomos convidados, nessa mesma altura, para ser os seus padrinhos. Algo que a princípio nos surpreendeu, mas que desde logo, deu lugar a uma imensa alegria. Era algo que desejávamos à muito e que o destino não nos tinha até então concedido. A surpresa deu lugar de imediato à aceitação e desde logo a Inês, embora ainda não estivesse entre nós, já começava a ser amada, a ser um membro muito querido desta família. Daí não tardaram os projetos, as conjeturas, os anseios, os desejos. A Inês passou, definitivamente, a ocupar um lugar muito importante nesta casa, um lugar muito importante nos nossos corações. E, tal como a semente lançada à terra que está em processo de germinação, a Inês foi fazendo o seu percurso, até que num belo dia de Outubro surgiu esplendorosa entre nós. Foi o desabrochar da mais bela flor do meu jardim de Outono, um Outono de vida que se aproxima do Inverno a passos largos, mas que espero que ainda vá a tempo de lhe transmitir alguns desejos, alguns anseios, alguns ensinamentos que a torne um ser melhor, um ser mais perfeito, um ser mais esplendoroso, que seja a luz num mundo cada vez mais às escuras, afundado em crises - não só económica ou financeira mas, sobretudo, de valores - que, infelizmente, parece ser o diapasão dos nossos tempos. Quis o destino que, ainda na maternidade e horas após o seu nascimento, eu tivesse o privilégio de ser a primeira pessoa que pegou nela ao colo, que a teve nos braços, depois dos seus progenitores. Não sei se foi uma mera coincidência, - será que as há? -, se foi uma premonição, mas a felicidade que tive foi sem limites. A Inês do meu contentamento, a mais bela flor do meu jardim de Outono estava ali, finalmente, nos meus braços. Frágil como todos os recém-nascidos, mas tão cheia de expectativas - que nem ela própria sabia que transportava em si! - que tornaram aqueles minutos (muitos) numa felicidade sem par. Como me foi difícil naquele dia deixar a minha bela Inês para dar lugar a outros que, tal como eu, ansiavam visitar o novo rebento. No dia seguinte lá voltei, como passei depois a reencontrá-la na sua casa, mais tarde na minha, num imenso amor que não necessitou de ir crescendo, porque grande ele já era, ainda a Inês estava em processo de gestação. E hoje estou a falar-vos de tudo isto porque hoje a Inês perfaz dez meses da sua ainda curta existência e, precisamente hoje, na altura em que este testemunho está a ver a luz do dia, eu estarei (nós estaremos) na Igreja a batizar a minha (a nossa) Inês. Oficialmente hoje, seremos os seus padrinhos de facto, embora já o fossemos à muito de coração. É um dia marcante, é um dia feliz, é um dia de alegria, é um dia de responsabilidade conscientemente assumida. A Inês que, entretanto, se vai aprimorando mostrando ser uma criança muito determinada, passou a ser a luz duma vida já acinzentada, como todas as que vão caminhando para o inevitável Inverno, como todas as que vão caminhando para o seu ocaso. E só isso me deixa triste, num paradoxo do dia de alegria e felicidade que hoje se celebra. Triste porque acho que não terei demasiado tempo disponível para ajudar a minha bela Inês a caminhar na vida. Veio tarde, demasiado tarde, embora com o amor incomensurável de alguém muito querido. Mas, se a vida assim o permitir, espero ainda ter tempo de lhe transmitir alguns valores que venho repetindo: o ensiná-la a ser solidária com o seu semelhante, o ser amiga e defensora dos animais, o ser respeitadora da natureza. Seja lá ela o que for, seja lá ela o que o futuro lhe destinar, se cumprir e aprimorar estes três vetores será necessariamente uma grande mulher. E como desejo que isso aconteça! Embrulhada no seu nome de rainha, estou certo que a Inês do meu contentamento não me desiludirá. Estou convicto que a mais bela flor do meu jardim de Outono brilhará com cada vez maior intensidade porque sabe que é muito amada, muito querida, muito desejada. Espero dela muito, talvez demasiado, mas estou habituado a colocar a fasquia da vida muito alta, onde só os melhores são capazes de passar. E a Inês será capaz de a ultrapassar, estou seguro. Como costumo dizer, os segundos são os primeiros dos últimos, por isso, só nos resta sermos os primeiros, os que praticamos a excelência, porque só desses a história irá fazer registo. A Inês, estou certo, será capaz da exigência que lhe imponho, da excelência que a colocará acima da mediocridade do mundo em que vai viver. Disso estou convicto. São os votos dos padrinhos. São os meus votos. Estarei sempre ao teu lado, este é o meu compromisso. Enquanto puder, enquanto o discernimento intelectual o permitir, enquanto tu o quiseres Inês, ter-me-ás ao teu lado, nunca caminharás sozinha. É o compromisso que hoje assumo, perante ti, perante o altar, perante o Ser superior, seja Ele qual for. Hoje brilhas esplendorosa como nunca no meu jardim de Outono. Serás a luz da minha vida, o farol da minha velhice. Força Inês, agora estamos oficialmente juntos embora já o estivéssemos há muito pelo sentimento. Agora Inês, caminharemos lado a lado.

Saturday, August 11, 2012

Conversas comigo mesmo - CIV

É proíbido desanimar. Elias é bem a imagem de tantos que encontramos nos caminhos da vida, e, possivelmente muitas vezes, a nossa própria imagem: descontentes, pessimistas, desalentados, agressivos, prontos a desistir. Desiludidos com o casamento, com os pais, com os filhos, com a política, com a vida, com a Igreja, com os cristãos, com a sociedade, com o emprego ou profissão. É diante desta situação, diante destes estados de alma em que nos podemos encontrar, que a palavra de Deus ganha uma especial ressonância: "Levanta-te e come porque ainda tens um longo caminho a percorrer". Levanta-te! Elimina da tua vida tudo o que é azedume, amargura, pessimismo, cólera, irritação, maldade, medo. Deixa-te invadir pela fé e pela esperança. Sê bondoso e compassivo, e entrega-te, com amor, às tarefas que a vida te pede e exige na tua família, na tua comunidade, no teu mundo social e profissional. Come! Não se pode viver sem comer. Jesus Cristo é o pão da vida. Toma-O com vontade de O assimilar e n'Ele encontrarás novas forças para o teu caminhar. Esta é a mensagem subliminar para este décimo nono domingo do tempo comum que amanhã se cumpre. Aproveitemos estas férias - quem as goza neste momento - para uma reflexão sobre este tema.

Wednesday, August 08, 2012

"Judas, o obscuro" - Thomas Hardy

"Judas, o obscuro" é um romance de drama e tragédia da nossa civilização. É indiscutível que o século XIX e o XX vão ambos ficar caracterizados, literariamente, pelo predomínio quase absoluto do romance como género literário. Ora, dentro do romance, também é fora de dúvida que a Inglaterra não cede um passo a França na luta pela primazia mundial. Ainda seguindo o mesmo critério de excelência, ninguém negará que, na Inglaterra, Thomas Hardy pertence a uma categoria absolutamente ímpar, junto com Dickens, Meredith, Falsworthy, Lawrence e alguns poucos outros. E com mais certeza ainda se poderá afirmar que, na obra de Thomas Hardy, nenhum romance pode disputar a primazia a “Judas, o Obscuro”. Resulta, portanto, de tudo isso, que este romance é, inegavelmente, uma das maiores obras-primas que a humanidade possui e um dos livros que mais fielmente podem refletir o drama ou a tragédia que a nossa civilização vive. Toda a problemática do homem moderno, na sua vida íntima, aí está refletida, graças à extraordinária sensibilidade e ao excepcional poder criador de perfeitas incarnações do homem sensível e delicado, bom e puro, que a máquina impiedosa das convenções sociais e dos egoísmos individuais não hesita em esmagar, sem nem sequer desconfiar da desgraça que está ocasionando. Mas, que pode ele fazer senão ser ele mesmo? E pode ela fazer senão ser ela mesma? Judas não só não conseguirá construir o seu futuro, realizar os sonhos de infância, como nada poderá fazer contra o seu destino de perseguido e de eterno ignorado. Desconhecido, incompreendido, enganado, só poderá responder aos golpes da vida com a pureza do seu gesto, tantas vezes repetido, de desvendar inutilmente aos olhos de todos o seu coração de homem. Os que o rodeiam viram então a face, porque suas feridas ferem a eles próprios. Não o compreende, na cegueira dos seus pequenos preconceitos de mulher conscientemente inteligente demais para o seu meio, a criatura que ama e amará a vida interia acima de todas as coisas. E a outra é só mentiras e engodo. Uma e outra dele só se aproximarão para reforçar, de um dos modos mais trágicos a que já nos foi dado assistir, o grito lancinante do poeta contra a mulher: “Tu n’es jamais la soeur de charité, jamais!”. Por outro lado, o que torna ainda maior e mais classicamente trágico “Judas, o Obscuro” é que essa verdadeira biografia de um fracassado foi escrita por um dos homens que mais profunda e mais delicada, mais piedosamente, souberam se inclinar sobre o sofrimento humano. Poucos livros serão mais tristes – amargo, nas suas páginas finais, como poucos livros terão sido amargos. Poucos possuem, em tão alto grau, o sentido da tragédia humana, no que ela tem de mais absolutamente insolúvel e eterno. Acompanhando Judas, passo a passo, no seu terrível calvário, é o próprio homem que Thomas Hardy acompanha. É o Absoluto que se atinge, através dessa experiência de homem, e de homem em luta com as realidades sociais da sua época. E é por isso que o valor da obra me parece inexcedível, como inexcedível é a sua importância para a nossa experiência individual. A todos os títulos recomendável.

Tuesday, August 07, 2012

Chavela Vargas a morte aos 93 anos

Morreu ontem no México uma das cantoras de referência da América Latina de seu nome Chavela Vargas, tinha 93 anos de idade. De nacionalidade porto-riquenha, Chavela Vargas foi para o México onde se tornou uma das maiores cantoras de "rancheras" (música tradicional mexicana). Começando por ser uma cantora de rua, privou com Garcia Lorca, Vargas Llosa, Pablo Neruda e outros. Ela ressurgiu - embora nunca tenha sido esquecida - pela mão de Pedro Almodóbar na banda sonora do seu filme  "Tacones Llejanos" com a canção "Luz de luna". Cala-se assim, uma das vozes mais importantes da música da Latino América, que muito contribuiu para a projeção da música deste lado do mundo. Uma voz ímpar e límpida, daquelas vozes que parecem que quando desaparecem nunca mais as conseguimos substituir. Deixo-vos aqui um link: ( http://www.youtube.com/watch?v=_H2qi6SmnSQ ) duma canção que é uma referência da cantante "Piensa En Mi". Descansa em paz, Chavela Vargas!

Monday, August 06, 2012

Equivocos da democracia portuguesa - 196

Os últimos dias têm sido férteis em acontecimentos e declarações que têm passado um pouco ao lado dos portugueses. Não só porque se está em pleno período de férias mas, sobretudo, porque esses acontecimentos passam um pouco ao lado da política doméstica, embora a influencie de forma determinante. Já por diversas vezes trouxemos aqui a nossa preocupação sobre o modo como a Europa está a encaminhar tudo o que envolve a crise por que todos estamos a passar, bem como, a atitude sobranceira da Alemanha em toda esta envolvente. A tão falada crise que teve raízes bem profundas a muitos milhares de quilómetros do nosso país - contrariando algumas vozes que davam como certo que esta derivava do governo de então! - hoje atinge-nos a todos, - europeus -, duma forma desapiedada. O FMI já vem desde a algum tempo a falar na maneira errada como a UE tem lidado com o problema, não apresentando soluções, mostrando hesitações, até muita descoordenação, talvez até, alguma falta de empenho em a resolver. E aqui é que se coloca o verdadeiro problema. Porque a UE trouxe aquilo que muito se ansiava na Europa, a saber, um projeto de paz. A Europa sempre foi, ao longo dos tempo, um verdadeiro campo de batalha, que viria a culminar em duas guerras mundiais no século passado, que a colocaram à beira do abismo. Daí que a criação dum espaço europeu tenha ganho forma nessa altura, para de certo modo, impedir que se repetissem os erros do passado recente. E assim, ele se desenvolveu e fortaleceu, mas com alicerces frágeis, com pés de barro e, acima de tudo, com falsas promessas de fidelidade. E aos primeiros contratempos o verniz estalou. Cada país defendendo a sua visão paroquial - bem longe dos princípios defendidos pela UE - levando a uma desconfiança que se foi instalando e corroendo aquela que deveria ser a argamassa do projeto europeu. A crise financeira da dívida soberana foi o culminar, a verdadeira "raison d'être" para que se tornassem mais visíveis (mesmo para aqueles que não seguem estas questões de perto) a situação em que atualmente vivemos. E se Juncker, - líder do Eurogrupo -, já na semana passada, alertava para que a Alemanha estava a tratar a UE e o euro como se duma "filial" se tratasse, ontem foi Mario Monti, - primeiro-ministro italiano - em entrevista ao influente "Der Spiegel", que afirmava que se está a correr o risco "duma desintegração da Europa", culpando e bem - segundo o nosso ponto de vista - o comportamento pouco sério que a Alemanha tem tido em tudo isto. Sabe-se hoje que há algum tempo atrás o BCE fez um empréstimo à Grécia para evitar a falência desta e, - como vimos defendendo à muito -, esse deverá ser o caminho para futuro e a verdadeira vocação do BCE, defender os estados membros - com empréstimos, eurobonds, ou seja lá mais o quê - não seguindo os ditames da política alemã que, ao fim deste tempo, começa também a ver que a sua situação se está a degradar porque se os países à volta estão mal (muito por culpa da política alemã) então os negócios com estes países degradam-se e a economia alemã recente-se. É caso para dizer que a Alemanha está a provar do seu próprio veneno. Mas Monti, na entrevista de ontem, vai mais longe. Alerta para as clivagens que são cada vez mais evidentes entre o norte da Europa rico e o sul empobrecido, criando as condições para o renascer de velhos ódios que se pensavam enterrados há muito, mas que afinal parecem voltar a ter nova vida. E isto tendo por base o comportamento da Alemanha - motor da UE - fazendo ressurgir ideias passadas de triste memória. Somos dos que defendem incondicionalmente o projeto europeu, porque sem ele, a Europa caminhará pela senda dos ódios antigos de questões, porventura, mal resolvidas pela História, arriscando a que esta deslize duma forma inexorável para o abismo. A Alemanha já ficou na História recente por ter conduzido a Europa para duas guerras mundiais, será que isso não lhe basta? Será que não percebe que está a pisar de novo um caminho incerto que no fim puderá estar juncado de cadáveres como no início do século passado? Será que a Alemanha pensa que vai conseguir passar por entre os pingos da chuva sem se molhar? Estamos num dos momentos mais críticos da Europa do pós-II guerra mundial. Temos que tentar evitar trilhar o mesmo caminho de ódios e soberanias que cobriram a Europa de sangue e de ignomínia. É tempo de dizer basta a esta política alemã de empobrecimento dos seus pares onde apenas um ganha. É tempo dos governos nacionais - entre eles o nosso - evitar seguir as regras germânicas como o "bom aluno". No fundo, quem estiver ligado a esta estratégia será conivente com ela. Sabemos da nossa pequenez e fragilidade, mas também sabemos que, em momentos definitivos da História, soubemos dizer basta. Pensamos que estamos perante um desses momentos.

Sunday, August 05, 2012

Conversa comigo mesmo - CIII

Hoje, no 18º domingo do tempo comum, trago-vos uma proposta deveras complexa. Uma proposta de desprendimento que nem sempre somos capazes de fazer. "Trabalhai, não tanto pela comida que se perde, mas pelo alimento que dura até à vida eterna e que o Filho do homem vos dará". "Em verdade vos digo: Não foi Moisés que vos deu o pão do Céu; meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão do Céu. O pão de Deus é o que desce do Céu para dar a vida ao mundo". Destas duas propostas bíblicas, que parecem diferentes mas que são complementares, transportam a imagem do pensamento para este dia. Para isso, repesquei algumas palavras de Rafael Ramiro. "Ser pão... Pode ser bonito mas não é fácil tornar-se pão. Significa que já não podes possuir nada: nem coisas, nem tempo, nem talentos, nem liberdade, nem saúde. Todo o teu já não é teu, é de outros e para os outros. Significa que tens de estar inteiramente disponível, a tempo inteiro. Já não podes protestar se te exigem muito, se te incomodam muito, se te chamam a qualquer hora e para qualquer coisa. Significa que deves ter paciência e mansidão como o pão que se deixa amassar, cozer e partir. Significa que deves ser humilde como o pão que não figura na lista dos pratos famosos. Está aí sempre para acompanhar. Significa que deves cultivar a ternura e a bondade porque assim é o pão, terno e bom. Significa que deves estar sempre disposto para o sacrifício, como o pão que se deixa triturar. Significa que deves viver sempre no amor maior, capaz de morrer para dar vida, como o pão." Este é um bom tema de reflexão para este domingo. Quantos de nós, que nos dizemos seguidores de Cristo, somos capazes de tal desprendimento? Neste tempo de férias, com mais disponibilidade para o pensamento, analisemos estas propostas e assim sabermos se somos dignos de nos dizermos cristãos.

Karma: castigo ou aprendizagem?

Tenho trazido a este espaço alguns contos que se baseiam na filosofia oriental. Para aprofundar esta filosofia trago mais um texto, este mais completo e profundo. Diz assim. "A ideia de que a lei do karma “pune” e “dá recompensas” individuais é simbólica. Como todo o símbolo, ela não deve ser vista de modo mecânico. A visão fatalista do karma apenas atrapalha a evolução. Para compreender a lei do equilíbrio e da justiça, é preciso perceber de que modo ela funciona. Ela desdobra-se através de uma onda dinâmica e complexa de acontecimentos e inter-relações, no contexto amplo da vida. O karma não é, pois, uma linha puramente individual de ações e reações. É verdade que há uma linha individual de plantios e colheitas. Esta linha kármica apresenta ações e reações reguladas pela lei da justiça e do equilíbrio. Porém, visto em profundidade, o karma é fundamentalmente colectivo, embora tenha uma forte componente individual. É desse facto que surge a Lei da Fraternidade Universal. Tudo se comunica, no planeta e no universo, e todos os seres vivem em unidade. Esta comunicabilidade implica uma troca e uma interação constante entre todos os seres, regulada pela lei da reciprocidade. Portanto, os karmas individuais dialogam entre si o tempo todo, influenciando-se uns aos outros. O karma individual só se desdobra segundo as possibilidades oferecidas pelo karma colectivo. A literatura teosófica ensina que a humanidade inteira compartilha hoje o karma da quinta raça-raiz e da quinta sub-raça. Num ciclo menor, a humanidade está atada ao karma da civilização actual, com suas vantagens e desvantagens. Existe uma estrutura média das famílias, uma capacidade média de amor dado a cada criança que nasce, e uma série de determinantes e condições culturais, entre outros inúmeros fatores. Vejamos um exemplo concreto de um karma que não é puramente individual. Examinemos o caso do nascimento de uma criança autista. Além de este ser um evento kármico que tem uma linha “individual” de ações e reações do eu superior que “nasce” como criança autista, o acontecimento é também um karma do pai e da mãe, da família e da sociedade em que nasce o autista. É um bom karma, embora traga sofrimento, porque constitui um evento cheio de possibilidades de aprendizagem. E é algo que está longe de ser puramente individual. Os indivíduos que nascem hoje com limitações são exemplos de falências kármicas colectivas. Nada ocorre por acaso, e esta é uma herança humana. Neste exemplo, também, os factores colectivos existem ao lado das dificuldades individuais do eu superior que não consegue renascer completamente. Há também outro aspecto relevante na abordagem da lei do equilíbrio. A palavra “punição”, aplicada ao karma desagradável ou doloroso de alguém, é uma expressão infeliz e ineficaz porque sugere que as dificuldades da vida sejam “castigos”. A verdade é outra. Não existe qualquer Deus pessoal e monoteísta cuja ocupação predileta seja “punir” ou vingar-se das pessoas que o desagradam. Uma Escola de Almas: Não há punição. Há lições. A vida não é um sistema penitenciário. A vida é uma Escola de Almas. Falar em punição sugere uma visão autoritária da vida. Na medida em que falarmos de karma como punição, estaremos usando uma linguagem simbólica. Vamos encontrar esta metáfora na literatura teosófica clássica. Mas esta não é a única forma possível de descrever a realidade, e a linguagem do século XXI deverá ser a linguagem da pedagogia, da aprendizagem, do despertar da consciência. Linguagem simbólica à parte, a lei do karma é sobretudo a lei da aprendizagem. O nosso planeta é uma grande escola de almas. Nele, há lições lentas para os alunos mais “difíceis”, e há lições mais rápidas para os alunos que aprendem por mérito próprio e através de um esforço consciente. Alguns eventos são agradáveis, outros desagradáveis, mas todos trazem lições, e qualquer experiência humana em que não houvesse alguma dimensão de ensino e de aprendizagem seria uma experiência inútil. As lições kármicas são basicamente colectivas, como vimos, porque tudo está interligado. O próprio eu separado é, tecnicamente, uma ilusão. Só o eu superior é real, e ele é universal, não-separado. Portanto, o karma “separado” não existe. O karma individual não só está ligado ao karma colectivo, mas depende inteiramente dele para desdobrar-se. O karma de alguém só existe num cenário colectivo com o qual ele dialoga e interage o tempo todo. Um estudante atento de teosofia evitará, portanto, cair na ilusão de pensar que, “se alguém nasce autista, a culpa é do autista, e a alma da criança deve estar sendo castigada por algum erro do passado”. Isso seria o mesmo que dizer, fazendo uma generalização, que, se os negros eram oprimidos durante a escravidão, a culpa era deles; se os judeus eram perseguidos, a culpa era deles, se os trabalhadores sofrem com o desemprego e os salários baixos, a culpa é deles - e quando alguém é roubado ou assassinado, a culpa é da vítima. “Se alguém está sofrendo, é porque errou”, dizem os desinformados. Tal raciocínio não é só simplista, mas também perverso e anti-evolutivo. Nem tudo é colheita, no karma. Longe disso. Há inúmeros erros novos sendo plantados o tempo todo. Há centenas de milhares de novas injustiças sendo cometidas pela primeira vez. Todos estes desequilíbrios terão que ser reparados e compensados a seu devido tempo. A função de quem busca a sabedoria é colaborar com o equilíbrio e a justiça. Não é justificar o sofrimento que pode ser evitado, adotando uma postura destituída de solidariedade. Assim, nem todos os que nascem como autistas ou com limitações físicas estão “colhendo o que plantaram”. Muitos são vítimas de circunstâncias alheias a seu karma pessoal e por isso serão devidamente recompensados no futuro. Só o ponto de vista da solidariedade universal entre todos os seres - também chamada de Compaixão - permite compreender a essência da filosofia esotérica. O karma é inseparável da compaixão. Sem compaixão não há vida inteligente. O karma humano é fundamentalmente um só, e é precisamente por isso que a humanidade evolui através da ajuda mútua e da solidariedade. Este é o ensinamento dos grandes instrutores de todos os tempos. No plano individual, os seres humanos colhem, em geral, algo compatível com o que plantaram. Mas o processo está interligado a muitos tipos diferentes de karma colectivo, e não há uma correspondência imediata, directa ou mecânica entre o plantio e a colheita de um indivíduo. Os seres também colhem o que não plantaram, o que será compensado mais adiante, tanto no caso da colheita imerecidamente dura, como no caso da colheita imerecidamente agradável. Assim, quando alguém deseja que lhe ocorram coisas agradáveis antes de examinar se as merece, está apenas desejando gastar antecipadamente o seu karma positivo. Caso isso ocorresse, o resultado seria um futuro especialmente doloroso devido ao gasto exagerado de karma positivo. Não há, pois, karma bom e karma mau. Todo o karma é bom, no sentido de que todo o karma traz lições a quem tem olhos para ver. O que existe, isso sim, é karma agradável e karma desagradável. E nem sempre o que é agradável é bom. Inúmeras vezes o karma desagradável faz alguém despertar, enquanto o karma agradável adormece e entorpece o indivíduo. A Bicicleta em Movimento: Um dos princípios fundamentais da filosofia esotérica ensina que, através da lei da reencarnação, todo o esquema da natureza funciona e evolui de modo perfeitamente justo. Este axioma da sabedoria eterna necessita ser examinado com bom senso. De facto, todo o esquema da natureza é justo. Disso não há a menor dúvida. Mas ele é justo no sentido de que está sempre a corrigir-se a si mesmo, e não no sentido de que faz perfeita justiça em cada um dos seus momentos, vistos isoladamente. Podemos comparar isso com o modo como alguém anda de bicicleta. O karma é, de facto, como uma bicicleta em movimento. A roda da frente, a roda do karma, está sempre pendendo para um lado e para o outro. Ela nunca está em perfeito equilíbrio, mas sempre compensando desequilíbrios. A perfeição está, pois, no processo pelo qual a roda da frente da bicicleta corrige sempre cada um dos seus erros. Buscar a sabedoria é obter o equilíbrio na roda da vida e aprender a corrigir as imperfeições. Há erros o tempo todo. Pessoas sofrem injustiças. Populações inteiras são roubadas por governantes criminosos. Os exemplos são fáceis de identificar. Seria equivocado dizer que cada sofrimento que ocorre é justo ou necessário. Ao contrário: a lei do karma é, entre outras coisas, a lei da compaixão. Ela estabelece que as almas mais experientes e mais sábias devem lutar pela eliminação da causa do sofrimento. Há uma ideia-chave que ajuda a compreender este facto. Compaixão não é negar o karma dos erros passados de ninguém. Compaixão é criar oportunidades para que este karma, ao invés de ser “punido”, seja compensado através de uma aprendizagem positiva. Neste caso, o indivíduo pratica, na vida seguinte - ou na fase seguinte da mesma vida - o bem oposto ao mal cometido, conforme recomenda o Yoga de Patañjali. O Raja Yoga ensina que se deve substituir o pensamento errado pelo pensamento correcto que se lhe opõe. Assim também deve-se compensar a ação errada pela ação correcta que lhe é oposta. Se alguém comete um erro numa encarnação, trata-se de construir condições kármicas para que essa pessoa, como todas as outras, possa ser levada na vida seguinte a cometer o bem oposto, e não a sofrer mecanicamente o mesmo erro na condição de vítima, e tampouco a repetir o erro. Para isso, é necessária a prática da fraternidade universal como um princípio inseparável da justiça. Deste modo se construirão condições para que todas as novas gerações possam compensar os erros e limitações de vidas passadas de modo construtivo, e não destrutivamente. Como diz no seu capítulo 53 o Wen-tzu - uma obra clássica do taoísmo filosófico - é recomendável criar condições culturais e colectivas que dêem oportunidades às pessoas para agirem de modo virtuoso e correcto. Elas devem resgatar os seus erros colocando em prática as ações corretas que lhes correspondem simetricamente. A sabedoria esotérica ensina que um erro não justifica o outro, e vingança não é justiça. A cada erro corresponde a boa ação que o compensará. Só a boa acão adequada eliminará o karma da ignorância. A mera punição não liberta: a aprendizagem, a acção correcta, sim. O Karma e as Marés Externas da Vida: No caminho espiritual, é normal que durante algum tempo as boas acões sejam “recompensadas” apenas com mais sofrimento. Isso não ocorre porque “a vida é cruel”, como pensam alguns desanimados. Ocorre porque o bom karma não amadurece de imediato. Longe disso. Ao amadurecer lentamente, o karma funciona de modo a evitar que os avanços do peregrino no caminho espiritual sejam superficiais, ou aconteçam sem os devidos testes. A demora no amadurecimento do karma não é o único factor que testa a perseverança. A cada passo adiante no caminho do autoconhecimento, é atraída uma força igual no sentido contrário. Em consequência disso, o estudante deve estar preparado tanto no plano físico como nos planos emocional e mental. A lei do karma é a lei da reciprocidade. A cada ação corresponde uma reação que virá testar, no mesmo plano da realidade, a força da sua decisão no sentido de trilhar o caminho de modo durável. Não há avanço “fácil” ou “gratuito” que seja sólido no caminho espiritual. É necessário avançar de modo consistente, passo a passo. Deve-se ter uma vontade incondicional, capaz de ganhar força cada vez maior nas dificuldades. A natureza da felicidade do estudante deve ser estável, isto é, independente das marés externas da vida. É esse realismo que diminui radicalmente o tamanho das deceções, e que aumenta, por outro lado, a solidez e a durabilidade das vitórias." Este é um extrato de "O Teosofista" de autor desconhecido.
 

Thursday, August 02, 2012

Querer ir para sul com a carruagem a andar para norte - Conto oriental


Este provérbio é usado pelos chineses para criticar ou satirizar os que agem de forma contrária à razão, e os que, em vez de atingirem os seus objetivos, se afastam cada vez mais deles. Este provérbio é uma tradição que remonta ao período dos Reinos Combatentes, que teve lugar há dois mil anos. O soberano do reino Wei pretendia desencadear uma guerra contra o reino Zhao. O ministro Ji Liang, que se encontrava num terceiro reino em missão diplomática, inteirou-se da situação e não perdeu tempo em voltar ao seu país, a fim de pedir ao rei uma audiência para tentar impedi-lo de executar o seu plano de guerra. Uma vez em presença do rei, dirigiu-se-lhe da seguinte forma: - Meu respeitável senhor! Quando regressava ao nosso reino, encontrei um homem numa carruagem que corria em direcção ao norte, mas ele disse-me que se dirigia para o reino Chu. Perguntei-lhe então: “Mas se o reino Chu fica no Sul, porque é que está a dirigir-se para Norte?” O homem, sem ligar à minha pergunta, respondeu com toda a calma: “O senhor não vê como os meus cavalos são velozes?” - “Por mais velozes que sejam os seus cavalos, nunca chegará ao seu destino”, retorqui eu então.- “Olhe, meu bom amigo, eu trago muito dinheiro para a viagem”, respondeu-me o homem, ao que eu lhe retorqui que, por mais dinheiro que tivesse, nunca conseguiria chegar ao reino Chu. O homem deu uma gargalhada, dizendo-me: “Não se preocupe, meu bom amigo, pois o meu cocheiro é o melhor do mundo”. Terminada a história, disse o ministro ao rei: - Não é mesmo estúpido? Por mais velozmente que os seus cavalos corram, por mais dinheiro que leve, e por melhor que seja o seu cocheiro, nunca chegará ao seu destino, pois segue na direcção errada. As boas condições de que goza só lhe servirão para se afastar cada vez mais do seu objectivo. O ministro fez uma pausa, e continuou: - Agora o mesmo está a acontecer com Vossa Alteza. Com o vosso vasto território e com as vossas tropas bem treinadas, pretendeis invadir um outro reino em busca da hegemonia. Porém, a meu ver, Vossa Alteza está a comportar-se da mesma forma que aquele homem que, com a carruagem a andar para Norte, pretende ir para Sul. Para obter o controle de todos os reinos, deve obter em primeiro lugar a confiança de todos. Ao recorrer à guerra, se afastará do seu objectivo. Aceitando a crítica do seu ministro, o rei Wei suspendeu o seu plano de guerra. Desta antiquíssima história ficou o provérbio chinês: Querer ir para Sul com a carruagem a andar para o Norte.

Wednesday, August 01, 2012

Jordi Savall em dia de aniversário

Jordi Savall i Bernadet nasceu em Igualada, Espanha, a 1 de Agosto de 1941, cumprindo assim hoje, o seu 71º aniversário. Savall é um músico e compositor catalão, especialista em  viola da gamba. Especializou-se na música medieval, tendo já traduzido inúmeros manuscritos de origens várias: mourisca, turca, grega e espanhola. Em 1974 formou, com a sua esposa, Monserrat Figueras — uma brilhante cantora também catalã —, o grupo Ensemble Hesperion XX, mais tarde Ensemble Hesperion XXI, cujo esforço tende a revitalizar a música original antiga, do século VII até ao século XVII. Hoje trago-vos aqui este grande símbolo da música antiga, não só por ser o dia do seu aniversário, mas sobretudo, pela grande importância que representa na música antiga, epíteto que ele renega, visto considerar que a música que toca "é dos nossos dias com referência aos compositores antigos". Esta afirmação pode parecer surpreendente, mas tem o seu fundo de verdade. Porque a música antiga não tem as indicações nas pautas que podemos ver nos compositores mais recentes, dando lugar a um espaço de interpretação ao sabor do executante, dentro dos padrões usuais para a época. Era esta uma prática nesses tempos mais recuados, o que torna a afirmação de Jordi Savall com um fundo de verdade. Da vasta obra de Savall, queria aqui destacar, - se tal me é permitido dada a grandiosidade da obra e a sua altíssima qualidade -, "La Ciudade De Las Dos Paces". (Deixo-vos aqui um link http://www.youtube.com/watch?v=1sLwoG6QQXg onde podem ver e escutar esta magnífica obra, numa edição do canal televisivo Mezzo, o único senão é a legendagem em francês, penso não existir em português). O porquê desta referência prende-se com a união que Savall tem buscado entre a música do Ocidente e do Oriente, aqui tendo por centro a cidade de Jerusalém. Em povos e culturas tão diferentes, quase sempre de costas voltadas em nome dum Deus que é mais próximo do que os seus seguidores de ambas as partes supõem, Savall lança pontes de entendimento, de aprofundamento, vendo união onde muitos vêem separação, vendo harmonia onde outros vêem dissonância. Só por isso, já teria valido a pena. Mas esta obra - que existe disponível em Portugal - é acompanhada por um volumoso livro onde, para além dos textos que são interpretados, tem também referências históricas muito interessantes e úteis para aqueles que gostam de ir mais fundo e não ficar pela superficialidade dos temas. Edição luxuosa à qual já fiz referência neste espaço a algum tempo atrás, segue o mesmo diapasão de outras como aquela que, por exemplo, faz referência aos cantares e aos hinos do tempo de Joanne D'Arc. Este tipo de apresentação, leva aos interessados não só a música, mas algo mais, que faz com que a compreensão desta seja mais profunda e significativa. Para os seguidores do género, Jordi Savall e a sua obra dispensam apresentações, para os outros, espero deixar um acervo de curiosidade que os leve a conhecer a obra magnífica deste músico e compositor catalão, que muitas vezes já tem passado pelo nosso país.

De quem é o presente? - Conto oriental

Perto de Tóquio vivia um grande samurai idoso que agora se dedicava a ensinar o zen aos jovens. Apesar de sua idade, corria a lenda de que ainda era capaz de derrotar qualquer adversário. Certa tarde, um guerreiro conhecido pela sua total falta de escrúpulos apareceu por ali. Era famoso por utilizar a técnica da provocação: esperava que o seu adversário fizesse o primeiro movimento e, dotado de uma inteligência privilegiada para reparar os erros cometidos, contra-atacava com velocidade fulminante. O jovem e impaciente guerreiro jamais havia perdido uma luta. Conhecendo a reputação do samurai, estava ali para derrotá-lo e aumentar a sua fama. Todos os estudantes se manifestaram contra a ideia, mas o velho aceitou o desafio. Foram todos para a praça da cidade, e o jovem começou a insultar o velho mestre. Atirou algumas pedras na sua direcção, cuspiu no seu rosto, gritou todos os insultos conhecidos, ofendendo inclusive os seus ancestrais. Durante horas fez tudo para provocá-lo, mas o velho permaneceu impassível. No final da tarde, sentindo-se já exausto e humilhado, o impetuoso guerreiro retirou-se. Desapontados pelo facto do mestre aceitar tantos insultos e provocações, os alunos perguntaram: - Como é que o senhor pode suportar tanta indignidade? Por que é que não usou a sua espada, mesmo sabendo que podia perder a luta, ao invés de mostrar-se covarde diante de todos nós? - Se alguém chega até você com um presente, e você não o aceita, a quem pertence o presente? - A quem tentou entregá-lo - respondeu um dos discípulos. - O mesmo se aplica à inveja, à raiva, e aos insultos - disse o mestre - Quando não são aceites, continuam a pertencer a quem os carregava consigo. A sua paz interior depende exclusivamente de si. As pessoas não lhe podem tirar a calma, só se você permitir...