Temos vindo a assistir a uma pressão inqualificável sobre o TC, quer da "troika", quer do governo e seus sequazes como aconteceu a semana passada com Braga de Macedo numa conferência na Universidade do Texas, em Austin, que deu a ideia de que o TC está ao serviço duma qualquer revolução comunista, embora os seus membros sejam indicados pelos partidos, desde logo, os do governo. A deturpação e a falsificação da realidade são de tal ordem que só se explicam ou por ignorância absoluta, o que parece não ser o caso, ou por vontade de causar uma impressão num auditório que se supõe estar à espera de ouvir daquilo. Depois foi o relatório sobre os famosos "swaps" que tentam ilibar a ministra das finanças. Com o maior dos despudores, afirma-se a "grave responsabilidade do governo anterior e dos gestores públicos" e aqui cumpre fazer uma pergunta, então a ministra das finanças quando estava na REFER não era um gestora pública? Por ser diretora financeira não a iliba das responsabilidades, bem pelo contrário. E enquanto membro do governo o ter deixado deslizar o problema o que provocou a duplicação dos encargos potenciais de 1.600 para 3.200 M euros, também não é sua responsabilidade? São este assobiar para o lado quando toca ao governo ou à maioria que descredibiliza a política e a democracia. Isto já para não falar do diz que se está a negociar e se desdiz ao mesmo tempo em que o governo entrou após as afirmações de Mario Draghi sobre o eventual "programa cautelar ou outra coisa qualquer" para se seguir à "troika". Isso só por si já não era uma boa coisa, que simplesmente prova que a política seguida por este governo, afinal, não tem dado os resultados esperados. E não basta apontar o dedo ao TC para "sacudir a água do capote". Ângelo Correia há dias na SIC Notícias afirmava que este programa cautelar terá a duração de um ano - daí não ser preciso o acordo com o PS como afirmou o PM - mas esqueceu-se de dizer que ele é renovado de seis em seis meses. Como a dívida não para de aumentar, como o governo continua a não aceitar a sua renegociação, isto significa - como dizia o entrevistador - que "esta vai ser a nossa vida no futuro". E não basta dizer que queríamos seguir o exemplo irlandês por duas ordens de razão: em primeiro lugar, porque com a rejeição dum programa cautelar deixou Portugal sem referência; depois, porque a Irlanda, apesar da mediatização da saída dos países resgatados, não será um lugar feliz para se viver nos próximos anos. Porque os bancos foram resgatados com os dinheiros públicos que, embora se tenha evitado o risco sistémico, depauperou a economia colocando-a a níveis bem atrás, equivalente a muitos anos. "A Irlanda resgatou os seus bancos e depois apostou numa recuperação liderada pelas exportações-fantasmas que criam muito poucos empregos e só se tornam possíveis pelo artifício fiscal. Aparentemente, é esse o exemplo da Grécia" - Mark Blyth, in "Austeridade", pág.348. Ao baixar as taxas para as empresas tornaram a Irlanda um país apetecível pela multinacionais. Foi ver a Google, a Apple, a Microsoft e o Facebook a mudarem para lá as suas sedes. Estas empresas pagam 12,5% de IRC, cerca de um terço do que pagariam nos EUA. Só que essas empresas fazem exportações fictícias e criam um número muito pequeno de postos de trabalho locais. A Irlanda contabiliza as receitas das multinacionais que operam fora do país como exportações de serviços irlandeses, mesmo que não tenham nenhuma atividade em curso. O que potencia as exportações mais do que o ritmo adequado duma forma irrealista. A tendência do PIB na Irlanda segue a mesma variante da portuguesa, afinal foi fruto da mesma receita de austeridade. Em 2007 a dívida em relação o PIB irlandês era de 32% e hoje, depois de três anos de austeridade, situa-se nos 108,2%. Portugal começou com cerca 95% e agora já vai acima dos 127%. A mesma receita produz os mesmos efeitos, e quem esperava outra coisa era, seguramente, tolo, como diria Einstein. E a Islândia ia seguindo o mesmo paradigma, não fosse o diferente rumo que tumou aos desvalorizar a moeda - não tem o euro - e depois o deixar ir à bancarrota os bancos. Aqui recorremos mais uma vez a Mark Blyth: "A Islândia, sob muitos aspetos, era a Irlanda descontrolada. (...) Mas houve uma diferença importante. Enquanto a Irlanda seguiu o mantra da austeridade, cortou na despesa e resgatou os seus bancos, a Islândia deixou os seus bancos irem à bancarrota, desvalorizou a moeda, criou controlos de capitais e reforçou o Estado Social. Uma comparação entre as duas é a coisa mais próxima que pode encontrar de uma experiência natural dos efeitos da austeridade e dos resgates." - idem, pág, 348. O que só vem reforçar a ideia de que a austeridade não vai servir de nada. Os efeitos que provoca no imediato serão facilmente anulados no futuro, com uma economia destroçada, com as populações empobrecidas, com o desemprego fora de controlo. Nos anos 80 Portugal foi vítima da PAC (Política Agrícola Comum) - já aqui fizemos referência à maneira como Cavaco Silva então PM distribui dinheiro (10.000 contos aproximadamente 50.000 euros) para que os armadores destruíssem os seus barcos e os agricultores arrancassem as suas vinhas e deixassem de cultivar a terra - e, agora, somos vítimas duma estratégia de empobrecimento que está a destruir o tecido industrial. Portugal tem vindo a perder as suas indústrias mais emblemáticas - de que os ENVC são apenas mais uma - para se transformar num país de serviços, em que a banca terá um lugar importante, bem como o sol, num país com uma enorme costa marítima e uma enorme vocação turística. Isto já nos era ensinado na Universidade quando por lá passamos e, nessa altura, nem sequer ainda tínhamos aderido à então CEE percursora do atual UE. O desenho já estava feito. A riqueza a norte com as indústrias de maior valor acrescentado, o sul com o turismo, onde os senhores do norte vêm descansar uma vez por ano. Daí que à luz destes princípios a austeridade ultraliberal até seja compreensível embora inaceitável. Mais uma vez, nos apoiamos em Mark Blyth: "A austeridade tem sido posta em prática e continuará a sê-lo, pelo menos na zona euro, até ser abandonada ou afastada pelo voto. De facto, como vimos repetidamente, aumenta a dívida em vez de a diminuir. Portanto a dívida existe e precisa de ser paga, ou perdoada. Dado que o perdão está fora do confessionário é improvável, e que as outras opções, inflação e incumprimento, são ainda piores, é em grande medida inevitável que nos próximos anos a repressão fiscal e os impostos mais elevados sobre os maiores ganhadores se tornem parte da paisagem. (...) É assim que vamos tratar das nossas dívidas - através de impostos e não através de austeridade. Não porque a austeridade seja injusta, que o é, não por haver mais devedores que credores, que os há, e não por causa de a democracia ter uma tendência inflacionista, que a tem, mas porque a austeridade simplesmente não funciona". - Idem, págs. 358 e 359. Agora que o governo já vai preparando o discurso para um novo aumento de impostos para 2014, apoiado num possível não do TC sobre a convergência de pensões, parece que tudo fica mais claro. A saga do empobrecimento continuará, a depauperação do país continuará a ser uma realidade, e as miragens dum quase "milagre económico" não passará disso mesmo, como a retoma será uma figura de retórica política. A menos que, como afirmou Mark Blyth que atrás citamos, toda esta política seja rejeitada, ou por uma alteração da correlação de forças na Europa, ou pelo voto.