Espero que estejas bem, no país do arco íris, numa dimensão cheia de luz e prados verdejantes, na companhia dos teus irmãos que conhecentes na tua existência, mas também que tenhas reconhecido todos os outros que, desde a minha infância, povoaram a minha. Seres que como tu, foram muito amados e que fizeram com que eu fosse, com toda a certeza, um ser melhor.
Estou a escrever-te para que saibas que tenho muitas saudades tuas. Conheci-te à mais de 16 anos e meio, quando foste abandonado por gente sem escrúpulos, numa noite de grande temporal. Ouvi-te chorar toda a noite mas não sabia que estavas na rua. Madrugada ainda, vim ver o que se passava face ao teu choro contínuo, e dei contigo. Mal te peguei, tu estavas todo encharcado, escondido debaixo dum automóvel que estava estacionado à minha porta, mas logo te calaste quando me olhaste. Com aqueles olhos tão belos de pestanas espessas que sempre conservaste ao longo da vida. (E foi com esses olhos belos que olhaste para mim pela última vez como era meu desejo). Talvez tivesses sentido que era a tua hora boa, face a tal provação, na tua ainda tão tenra idade. Era véspera de Natal, daí o teu nome.
Depois de te ter resgatado, logo apareceram pessoas a querer ficar contigo. Até já tinham casota e cadeado para te acorrentarem para a vida! E nem sabiam se o senhorio deixava que lá ficasses (segundo me disse uma dessas criaturas) mesmo assim, e apesar de tudo! Tinhas saído dum sofrimento e prometiam-te outro até ao teu fim da vida. Mais tarde, na tua primeira visita ao veterinário, logo apareceu um casal já de alguma idade, que te queria adotar. Eras muito bonito, alegre e traquina. Mas a tua marca no meu coração já era funda e por isso ficaste. Como sabes, cachorro que resgato fica na minha vida até o destino decidir outra coisa.
Na nossa casa, logo foste recebido pela tua mãe adotiva, a Tuxa, que já partiu vai para um par de anos. Ela logo te adotou. Era muito maternal. Ensinou-te tudo o que uma mãe ensina aos seus filhos. Brincou muito contigo. Amava-te muito. E só assim, te ia tolerando tudo, mesmo quando tu eras demasiado atrevido para com ela. Mas tu também a amavas. Não esqueço o dia em que ela expirou à nossa frente. Tu estavas lá e percebeste tudo. Ficaste muito triste. No dia seguinte - porque os nossos cachorros nunca são enterrados no próprio dia - tu vieste e assististe. Ainda foste junto dela como a despedir-te. E nos dias seguintes e meses subsequentes, nunca deixavas de ir visitar a sua sepultara logo pela manhã. Era a primeira coisa que fazias quando acordavas. Depois foste indo cada vez menos, o tempo vai curando tudo, mas volta e meia, ainda te ias deitar junto da sua sepultura.
Porque, para além de seres corpulento, muito pesado, inspirares respeito, também tinhas um coração do mesmo tamanho. E assim permaneceste toda a tua vida. Quando estiveste doente, não paravas de nos lamber o rosto e as mãos, como forma de agradecimento por te termos dado uma existência digna. Mas também era a forma de sentires o amor que te tivemos toda uma vida. E nem sabes o que isso nos comovia.
Por isso, decidi escrever-te esta carta. Eu e a tua dona temos tido o coração muito apertado pela tua ausência. Ontem, ficamos mais pobres. A nossa vida ficou mais vazia. Ainda restam algumas coisas que foram tuas. A alcofa, os cobertores, as mantas, eu sei lá mais o quê, que nos faz lembrar a cada momento que um dia elas foram tuas e te aconchegaram. Agora, vão ser doadas a outros teus irmãos que sofrem neste mundo tão violento, as agruras da vida. Oxalá que essa energia que neles deixaste sirva para que outros encontrem o amor e um lar como tu encontraste. Seria a nossa alegria e, - tu aí em cima -, também ficarás feliz certamente.
Desapareceste do nosso mundo visível, mas estás aí sob uma outra forma de existência. A tua presença é sentida, quanto mais não seja, nos nossos corações que tanto te amaram. Estou seguro que estás bem porque seres sublimes e tão puros não podem ter outro desiderato. E diz aí aos teus amigos, - sobretudo àqueles que sofreram muito na vida, neste mundo tão agressivo -, que nem todos os humanos são maus. E dá o teu exemplo de como foste tratado. Porque no meio do terreno mais agreste há sempre uma flor capaz de surgir. Fala-lhes de ti, da tua vida connosco, deste amor que partilhamos contigo.
Quero-te dizer que algumas das linhas que aqui te deixo, já tinham sido escritas à quase dois anos, quando adoeceste gravemente e pensei que seria o teu fim. Mas tu não estavas de acordo, ainda querias viver mais algum tempo na nossa companhia. E recuperaste. E ainda foste para os teus lugares preferidos no lar que também era teu, como passeaste muitas vezes no jardim que tanto gostavas. E foram quase dois anos que passaram e que se cumpririam no final do próximo mês. E que felizes ficamos por te ter mais algum tempo na nossa companhia. Mas a vida é assim. O ciclo inexorável de vida e morte é imparável e nada podemos fazer para alterar a ordem das coisas. Um dia a tua hora chegou como chegará para todos nós.
E agora já é tempo de me despedir. Não um adeus, mas um até um dia. Estou convicto que no dia que a minha hora também chegar aí estarás do outro lado da ponte do arco íris a esperar-me, a saudar-me, a acalmar-me face ao temor do desconhecido. E, certamente, que tu e os teus amigos, serão as melhores testemunhas daquilo que foi a minha vida. Lá, nesse plano superior da vida, quero crer que a luz será abundante, os campos verdejantes, as estradas bem planas. E não haverá animais a sofrer. Acorrentados ou torturados, abandonados ou violados, porque nesse plano não haverá espaço para essas situações, a maldade não terá terreno fértil para se agarrar.
Deixo-te estas linhas que ensopam o papel, são linhas humedecidas pelas lágrimas desta imensa saudade que nos deixaste ao partir. Não são tanto lágrimas de tristeza, mas lágrimas de esperança, daquela esperança que é sentir que estarás num sítio melhor. Porque foste um ser belo, sublime, imponente. Um ser leal e amigo como muitos humanos não são capazes de ser, porque foste uma luz brilhante na nossa existência.
Fica bem meu velho amigo e companheiro Nicolau, companheiro de tantos anos e de tantas lutas. Vai brincar com os teus amigos do país do arco íris e não te esqueças de me esperar porque tudo farei para ir ter contigo quando a minha hora soar. Porque um amor verdadeiro não se renega, nem se esquece e o nosso vai para lá do infinito, vai para além da Eternidade. Fica em paz, Nicolau!
Até ao dia do nosso reencontro.
Do teu amigo e companheiro,
José