A cruzada em curso pela destruição da classe média portuguesa segue a um ritmo imparável e desdobra-se em múltiplas frentes. Em dez minutos procurarei sintetizar em que consiste esse massacre e que consequências daí advêm para o futuro de Portugal.
Que instrumentos estão a ser utilizados para abater as classes médias?
- 1º, uma punção fiscal exorbitante e sem precedentes.
O imposto sobre os rendimentos das famílias (IRS) é objecto de sobretaxas variadas, alarga os respectivos escalões para converter e tratar como ricos os que eram meramente remediados ou tinham um nível de vida apenas acima da média. Há quem, não sendo rico, veja a avidez do fisco ficar-lhe com 60% ou mais do seu rendimento anual! Relativamente poupados só os rendimentos mais elevados. A progressividade do IRS é mais forte dentro das fronteiras da classe média.
O imposto indirecto sobre as transacções de bens e serviços já tinha passado, na grande maioria dos casos da taxa mínima de 6% e da intermédia de 13% para a taxa máxima (até ver…) de 23%. Infelizmente, na perspectiva do Governo, não se pode agravar mais. Já passámos o ponto em que quanto mais o IVA sobe menos o fisco colecta.
O IMI era para ser uma enormidade, onde o Governo aparentemente recuou na destruição da cláusula de salvaguarda, que impede ajustamentos súbitos de 1.000% ou 2.000% para prédios antigos e que pelo zelo dos proprietários ainda não estão a cair. No entanto, o IMI deveria idealmente compensar os Municípios pelos encargos com a conservação urbanística do ambiente de vida das pessoas (acessibilidades, limpeza urbana em todas as suas vertentes, zonas verdes e um grande et coetera).
Aumentam as contribuições para a Segurança Social.
Propõe-se uma série de agravamentos vários, incluindo em taxas de toda a espécie que tenham a ver com registos e notariado (por exemplo, licenças para casamento ou divórcio), na emissão de passaporte, no importo único de circulação. Tudo o que mexa será atingido.
Também as aplicações de poupança serão taxadas adicionalmente nas suas mais-valias, mas se houver menos-valias, quem as experimentar que as suporte.
- 2º, uma redução salarial efectiva através do corte de subsídios de férias e /ou Natal, para além da que resulta do aumento de desemprego, que tem efeito directo na redução dos novos salários contratados.
- 3º, uma redução brutal nas pensões de aposentação, independentemente dos direitos dos pensionistas que durante dezenas de anos pagaram as pensões das gerações precedentes e vêem agora impudicamente apoucadas aquelas a que têm indiscutível direito. Não se trata de qualquer benemerência do Estado.
4º, reduções substanciais de todo o tipo de apoios sociais, nas mais variadas circunstâncias, incluindo os subsídios de doença e desemprego e o Rendimento Social de Inserção (RSI). Um deles faz todo o sentido na óptica do Governo – a redução em 50% do subsídio de funeral. De facto, os velhos continuam a morrer (isto é, não fazem greve a esse dever cívico) e os falecidos, claro, nem sequer se manifestam.
5º - Redução significativa de todo o tipo de desagravamentos fiscais anteriormente em vigor, designadamente em matéria de gastos com a saúde ou de educação.
Peço desculpa se não sou mais preciso, mas à data de hoje continua a haver uma nebulosa sobre as propostas orçamentais, já que as primeiras intenções vindas a público poderão ou não ser mantidas consoante a celeuma que levantarem.
É uma forma original de fazer política. Atiram-se para cima da mesa as mais chocantes medidas que a imaginação permite. Se por acaso não levantarem um “tsunami” de críticas, ficam assim tal e qual. Se houver uma reacção tipo “levantamento geral de rancho” ou similar, faz-se apressadamente marcha atrás e tenta-se bater noutro sítio qualquer. A convicção na bondade do que se propões é pois manifesta...
As classes médias, historicamente, foram o fermento das transformações sociais e os actores principais do desenvolvimento económico e da criação científica e cultural.
As classes privilegiadas tradicionais não manifestavam apetência especial por “sujar as mãos” e envolver-se na indústria (primeiro artesanal, depois das revoluções industriais em bases mais ambiciosas, prefigurando a supremacia futura do capitalismo) ou no comércio, preferindo viver dos produtos da terra ou de rendas dos seus vastos domínios, além dos favores do Estado.
Os camponeses sem terra ou cultivando pequenas propriedades não tinham meios que lhes permitissem e aos seus sair da sua mediocridade e era precisa, já nos fins do século XIX princípios do século XX, a sorte de um eclesiástico de província reconhecer em botão num miúdo rural a chama e a inteligência que justificaram a reunião de apoios vários para fazer estudar quem se viria a tornar o Professor Bento Caraça, insigne matemático, pedagogo e humanista. Uma carreira de seminarista, ao menos numa primeira fase, era frequentemente, cá dentro e no estrangeiro, um meio comum para que jovens sem recursos pudessem estudar e afirmar-se socialmente pela sua competência e valor especial.
Através do estudo e do mérito intelectual, ou através do trabalho, da capacidade de realização e da vontade, iam-se a pouco e pouco acrescentando as classes médias, que se tornaram o alfobre dos valores que fizeram andar para a frente as sociedades, e com Portugal não seria de outra forma.
Destruir o tecido social das classes médias é condenar a prazo o País a vegetar na mediocridade, tornando os portugueses mais para ser mandados do que para mandar, como diria Camões.
O processo pode ser muito mais rápido do que se cuida. Portugal tem uma baixíssima taxa de natalidade, das menores da União Europeia a 27. As perspectivas demográficas apontavam já para uma redução significativa da população residente a prazo. Perante o cerramento dos horizontes e o fim da esperança de tantos em fazerem uma vida normal no seu país, de acordo com o seu esforço e capacidades, assistimos ao começo de um processo de “exportação” de cérebros e de mão-de-obra qualificada que, muito provavelmente, já não regressarão a Portugal a título definitivo. Esses portugueses que vão sair são qualitativamente diferentes dos que emigraram nos anos 60. Também havia alguma gente preparada nessa altura, que saiu para não participar na guerra colonial, mas os que o fazem agora são em média inquestionavelmente muito mais bem preparados, com saberes suportados por diplomas que lhes permitirão uma inserção profissional rápida e adequada. Essas competências foram pagas pela comunidade portuguesa e vão ser outros países a beneficiar do nosso investimento em capital humano. Rentável investimento, na verdade!...
Não sairão do País, é claro, a esmagadora maioria dos pensionistas e daqueles que já estão a entrar na fase final da sua vida activa – digamos, acima dos 50/55 anos. Mas saem fatias significativas dos que estão em idade activa e os miúdos que acederão à maioridade não são em número suficiente para os substituir. Com uma pirâmide etária invertida, tornamo-nos num país decadente, de velhos, provavelmente condenado cada vez mais à irrelevância.
Repito, não penso que seja viável aguardar pelo regresso daqueles que partem em busca de oportunidades de vida, trabalho e carreira. Os que partem agora falam línguas, têm conhecimentos técnico-profissionais, não terão por destino o bairro de lata de Champigny. Vão-se inserir nas sociedades de acolhimento, casar, construir família, enraizar-se e virão sim, de quando em quando, fazer uma visita aos familiares e constatar como evolui este País que os empurrou para fora das suas fronteiras, indicando-lhes aliás obsequiosamente o caminho da porta de saída.
Lembro-me da Irlanda que, em certa fase da sua história, perdeu para a emigração metade da sua população.
Gostaria que alguém me provasse que estas perspectivas são erróneas e apocalípticas. Até lá, entendo-as tão razoáveis e credíveis como outras que por aí circulam.